Olhares

SOBRE VESTÍGIOS E AUSÊNCIAS

Por Fabrício Brandão

 

Foto: Mercedes Lorenzo

Deter a visão por sobre as esferas de mundo que nos acometem é missão das mais homéricas. Na tentativa de compreender cada modesta ou intensa epifania que se nos apresenta diante de nossos frágeis domínios, por vezes deixamos passar traços ímpares da existência. E o esforço hercúleo por respostas costuma trair sentidos acostumados à sofreguidão dos efêmeros instantes. Como, então, não deixar passar incólumes as marcas de nossas intervenções?

Quem se permite envolver pelos percursos sugeridos pela fotógrafa Mercedes Lorenzo, quiçá encontre algumas consistentes pistas e, com isso, solucione a indagação levantada acima. De posse disso, é bom estar ciente de que a artista em questão não ousa, sob hipótese alguma,  colaborar com uma leitura rasa e superficial das coisas e seres captados pela luz de seu ofício. Muito pelo contrário, a densidade aqui é verdadeira matéria de ordem.

Qual um feixe luminoso que tenta cruzar pelos vãos de uma matéria qualquer e dali retira a substância impensada, o olhar de Mercedes é hábil instrumento de redimensionamento das situações. Se há o objeto primeiro e concreto a ser flagrado de imediato, por outro lado, existe também a sorrateira sensação de que planos invisíveis acontecem sob o efeito de um paralelismo de universos. Da coexistência entre o vivido e o imaginado, a fotógrafa deixa despontar a centelha que faz operar o fenômeno da convergência entre o ser e o não-ser.

Foto: Mercedes Lorenzo

Seja no retratar de ambientes ou no representar dos percursos humanos, a fotografia de Mercedes Lorenzo funda uma precisa poética dos vestígios. Daí, decorre uma curiosa sensação de que os homens deixam impressas suas marcas no espaço onde transitam suas sinas e, também, por ambientes nunca dantes ocupados. É quando a artista se utiliza com maestria do poder das ausências, conferindo teor àquilo que habita a órbita do intangível. E, assim, seduzidos pelos dotes do mistério, nos é dada uma relativa onisciência dos cenários.

Filha de imigrantes espanhóis e paulistana de nascimento, a fotógrafa, desde cedo, manifestou seu interesse pela imagem, tendo iniciado seu contato com a arte por meio de desenhos. Além disso, Mercedes também se dedica à escrita de poemas, através dos quais o elemento visual é ponto marcante. Para ela, pensar a fotografia como ponto de partida ou uma porta para desdobrar os conteúdos mentais de cada indivíduo que a vislumbra, parece ser uma função mais profunda e mais nobre do que um simples “clicar” de acontecimentos. A via humanista norteia seu trabalho de maneira que a percepção de um mundo e sua vastidão acontece, principalmente, no átimo de nossas hesitações.

 

 

Foto: Mercedes Lorenzo

 

 

 

 

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4 Comentários

  1. As fotos da Mercedes Lorenzo vão além do surpreendente, aparentemente simples me tocam e provocam emoções que me fazem parar para tentar localizar o que naquela imagem me capturou. Me levam para a cena, e me fazem pertencer a universos que nunca visitei. Já li alguns de seus poemas, mesclados as fotos e são limpos, precisos, certeiros, renovando o olhar e propondo sempre um ponto de vista insuspeito. Aos poucos ela me cativou com uma autenticidade que me ensina a ver a beleza e a poesia em espaços, ângulos, formas, luz, que nunca imaginei.Tenho uma profunda admiração por esta mulher que em sua arte sempre nos deixa algo de presente.

  2. Boa fala; belas fotos, têm sustança.

  3. Mercedes é grande poeta.
    Mercedes é grande fotógrafa.

    Não por acaso consegue captar dos lugares suas palavras gravadas, seus adjectivos. Dá-nos dos objectos, espaços, fendas, frestas, arestas, uma luz, um dom, uma capacidade que lhes concede identidade e destaque, uma personalidade que os faz serem únicos, além do momento, ficando gravados imediatamente em nossas retinas.

    É isso, Mercedes fotografa de dentro dos nossos olhos a intimidade das cenas.

    Para mim a poeta não está desassociada da fotógrafa, ao contrário, são gémeas que se ajudam, apurando os sentidos e expressando os sentimentos, alguns pelas palavras, ao escrever seus poemas esteticamente belos e literariamente inspirados, outros pelas imagens que as palavras buscam, ao fotografar as “coisas” (coisificadas por serem aparentemente comuns) com o status de objectos de Arte.

    Parabéns a Revista por trazê-la.

  4. Grata pela receptividade e comentários carinhosos: Beth, Sylvio e Eleonora… o incentivo de vocês é imensamente alimentador. Grata à maneira bonita com que a Diversos Afins mostrou esta parte do meu trabalho fotográfico, ao texto incrível de Fabrício Brandão e a todos que compartilharam da alegria em participar desta edição.

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