Janela Poética III

João Filho

 

 

Foto: Mercedes Lorenzo

 

 

ESTAMPA

 

01

 

Sempre falta alguma coisa
feito saída de viagem,
porém nada foi esquecido,
definitivamente certo:
sempre falta alguma coisa —
no vôo errático da ave
em busca, no acúmulo de
atos, na escolha do vário,
no acatamento do imenso,
na recusa da identidade,
ou disso tudo o contrário, mesmo
que não veja, falta alguma
coisa, que se concretiza em
trajeto ou imobilidade.

E essa falta integrante do
ser que ao Ser aspira ergue com
sua falha uma divisa
onde se apoia, um momento,
e é toda a sua cantiga.

 

02

 

Sei que esperamos, sei.
O sonho que se desata?
Na sala o terror súbito?
O até aonde nos for dado?
A Volta em julgamento?
Quem apressa a data sai
de dentro da esfera; quem
cada momento amarga,
ainda espera: a possibilidade
aberta que deságua em
Atlânticos de sentido,
no sempre espanto ou no
todo apagamento.

A espera e as suas leis,
a sua disciplina
austera e demorada, aqui nesta
brevidade que nos é
dolorosamente doada.

 

 

***

 

 

IMPONDERÁVEL

 

Quando nosso deus envelhecer
virá uma morte maior, de
nada adiantará os colossos
erguidos nas planícies e nos

desertos, nas montanhas sem fim
de nossa alma em sua jornada
agônica pelos séculos;
de nós salmo nenhum ao vento

dirá se fomos loucos ou belos;
porém no espelho insondável e
eterno, além de nossa pobreza
e vaidade, quem há de constatar

que nossa estadia não foi um
capricho? Nós, os imponderáveis.

 

 

(João Filho plana no blogue voo sem pouso e já assentou em várias antologias pelo Brasil adentro e afora. A última foi Geração Zero Zero, fricções em rede, organizada por Nelson de Oliveira. Individualmente pousou três vezes, em 2004 com os contos de Encarniçado, em 2008 com os poemas de Três sibilas, em 2009 com os contos de Ao longo da linha amarela. Espera que o seu pouso definitivo demore muito, até cansar as asas)

 

 

 

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4 Comentários

  1. Beleza, João Filho. Principalmente o último poema.

    W. J. Solha

  2. Eis o homem coisificado, de sentidos gastos, buscando sentidos para o ser.

  3. A poesia de João Filho é maravilhosa. Grande abraço.

  4. Muito bela a poesia de João Filho da Poesia. Abraços.

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