Janela Poética II

Mariana Ianelli

 

Ilustração: Denise Scaramai

 

ANDALUZ

 

Vaga pela terra, filho trágico,
Com as tuas duas mãos livres.
Furta o colo das putas,
Escuta o ventre delas exausto.
O retorno sempre admirável de Sarah
Te conduziria àquela velha madrugada de amplidão.
Mas afasta esta necessidade, filho.
Quem uma vez mudou seus sinais correspondentes
Não voltará de pronto.
Nenhuma reparação, não há nada.
No mundo, cotidianamente, andarás sem teu coração.
Por cinco anos andarás, cismando com tuas faltas.
É preciso que seja assim.

 

 

 

***

 

 

 

REMINISCÊNCIA

 

Esquecemos o tema.
Ele fende a madeira, bordando delicado as arestas,
Eu trato a colheita debaixo do cordão da aragem.
Nada nos pertence – últimos mandamentos,
O dever e o tédio dos dias,
Famílias lendárias, ironia.
Estamos de volta à beira dos mundos
E sob o pano se aquieta a razão
Da nossa continuidade secreta.
A geada bate na terra, desatina as séries da fome
E nós não desanimamos.
Todo o tempo pela coragem da maior renúncia,
Todo o tempo de hoje arrancado de falsas glórias.
Ele talha a madeira, aparando com bom jeito as margens,
Eu escolho as raízes, separo a polpa da casca.
Alguma diferença em nós
Surpreende a imprudência da fuga,
Um mistério não comentado,
Uma ambição impedida de voltar ao passado
Que tínhamos matado no tempo por um golpe de sorte.
Não perguntamos pela mãe deixada na ponta da história.
Assim foi resolvido.
Mortos, quebrados ao meio.
Revemos os exércitos calmos,
A conformação de milhares, o vírus temerário.
E nenhum reconhecimento é nosso:
A cela terrível dos anos, o verbo régio da tradição.
Na tarde isolada do terceiro dia,
Nós renascemos do ácido.

 

 

 

***

 

 

 

Ignoro se tu és capaz de voltar.
Quero a novidade de tua ausência
Com uma paixão sem calor que mais aumenta
Quando tento vencer a realidade.
Sou a paz em que acredito inutilmente
E ainda sou a vertigem desta paz.
O desejo de que tu compareças
Não dura em mim do mesmo modo que tua imagem,
Que tua forma irresponsável de mover-se
E se despir e descansar no meu passado.
Tu permaneces aqui sem teu corpo
E, pensando no oculto, eu abandono a existência
Para me deitar no lago das carpas.
Teria sido o final de um verão
E não o tempo em que te foste
Se em vez de amando eu estivesse louco.
Tu vives no propósito de minhas ficções:
Uma terra deserta, estável e mansa.
Nesta hora em que desapareces do meu sonho,
Também eu, predador de tua alma, vou com os mortos.

 

 

 

***

 

 

 

VÉSPERA

 

Há sinais
Que os teus olhos não veem,
Mas neles já se espelha um rio
Desde a outra margem.

Uma náusea das manhãs
De outras manhãs
Começa a distanciar-se
E o que te parecia imenso
Se acantona
Num espaço mal sonhado
Da memória.

Voragem,
O teu nome se descobre
Feito de estranhas vogais
– Um nome
Que jamais conteve
Toda a tua história –
E o que era eterno se ausenta,
Em tudo à espera
De uma nova eternidade.

Esse tremor
Que o teu bom senso não evita
(Não pode evitar a tempo)
Quando roça o teu braço,
Asa de corvo, um certo hábito
Absolutamente livre,
Morto de significado.

 

 

 

***

 

 

 

MIRADA

 

Uma tarde amarela
E dentro a parede rasgada
Já sem as altas janelas
De onde se via lá embaixo
A conversa das estátuas
Com seus olhos de pedra
Infinitamente ausentes
De se haverem voltado ao passado.

Não ficou uma só alma atrás da porta
Nem as portas ficaram.
Os gradis, as lanternas, os pilares,
Foram-se as barricadas.
A vida agora acontece em outra parte –
Era a mensagem, e parecia leve,
Translúcida na tarde amarela
Feito uma casca de cigarra.

 

 (Mariana Ianelli nasceu em São Paulo em 1979. É poeta e mestre em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP). Publicou os livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva alvorada (2010), O amor e depois (2012), todos pela editora Iluminuras. Breves anotações sobre um tigre (Ed. Ardotempo, 2013) é sua mais recente obra. Tem poemas publicados em Portugal, Espanha, Cuba e Argentina. Em 2008, recebeu o Prêmio Fundação Bunge (antigo Moinho Santista) na categoria Juventude. Em 2011, obteve menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas (Cuba) pelo livro Treva alvorada)

 

 

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