Por Fabrício Brandão
A Música segundo Tom Jobim. Brasil. 2012.
Uma câmera acelera seus percursos e varre a secular capital do Rio de Janeiro. Como num álbum de memórias, coleciona retratos de um tempo-berço, pano de fundo de um ambiente regado a contemplações e uma boa dose de romantismo. Quem pensa que com ela se inicia mais uma viagem do tipo cartão-postal da cidade maravilhosa, não imagina que está prestes a acontecer um caminhar fora do comum por sobre a trajetória de alguém.
Ao vislumbrarmos de pronto o nome de batismo do filme, A Música segundo Tom Jobim não nos deixaria pista alguma a respeito de como a narrativa do maestro soberano poderia ser contada num modus operandi cinematográfico. Muito pelo contrário: é preciso deixar que a sucessão dos instantes iniciais da obra se instale e reste bem clara a sua forma diferenciada de abordagem. Nela, o conceito padrão do gênero documentário é magnificamente substituído pelo que de mais especial a trajetória de um artista pode conter – a viva exposição de seu trabalho.
A partir do momento em que Gal Costa surge interpretando Se todos fossem iguais a você, no show “Tributo a Tom Jobim”, de 1993, abrem-se as portas de um delicado e emocionante trajeto pela obra do compositor. Tal como o título desta canção anuncia, a primeira sensação é a de que o legado do artista paira como um modelo de se creditar à existência um exercício constante de perceber a beleza das coisas que nos cercam. Depois desse começo clímax, um sem número de cantores e músicos do mais alto quilate revezam-se em recortes precisos sobre o ato de celebrar a carreira de Tom Jobim.
Dirigido por ninguém menos que Nelson Pereira dos Santos e também por Dora Jobim, o documentário deixa de lado a forma tradicional de se narrar a vida e obra de alguém. Não há depoimentos, entrevistas, narrações em off. Sequer há fala alguma. Predomina um acervo fotográfico e audiovisual meticulosamente selecionado para dimensionar a importância do compositor na formação musical brasileira. Tudo flui única e exclusivamente pelas ricas alamedas sonoras que a música em si é capaz de proporcionar. Diga-se de passagem, o próprio conteúdo de certas composições de Tom Jobim norteia a sucessão do tempo, especialmente pelo modo como cada intérprete mergulha no universo jobiniano.
Em meio à sequência de momentos marcantes da carreira de Tom, colecionando tanto aspectos íntimos quanto profissionais, um vasto painel de lembranças surge vigoroso. São passagens antológicas, tais como a sua estreia no palco do Carnegie Hall (famosa casa de shows de Nova Iorque), a parceria com o poetinha Vinícius de Moraes, os duetos com Frank Sinatra e o momento em que a composição Sabiá, feita juntamente com Chico Buarque, veio à tona num dos festivais da canção, e cujo registro imagético traz as vozes de Cynara e Cybele, integrantes do Quarteto em Cy. No que se refere aos apelos jazzísticos que sempre rondaram a figura do maestro, o filme mostra desde a magistral voz de Ella Fitzgerald, em Desafinado, como também assinala a presença de nomes como Dizzy Gillespie, Gerry Mulligan, Errol Garner e Oscar Peterson.
Ao mesmo tempo em que se traduz como um verdadeiro registro sonoro, o documentário possui um valor histórico inquestionável, pois a própria caminhada de Tom se confunde com passagens importantes da nossa música, sobretudo pelos movimentos que agregaram emblemáticas expressões, como é o caso da Bossa Nova. Um dos pontos do filme que reforçam essa ideia é a cena de “Um Desconhecido Bate à porta”, de 1958, na qual Elizeth Cardoso aparece cantando Eu não existo sem você, ao som do violão de um ainda jovem João Gilberto. E o que dizer também de Agostinho dos Santos interpretando A Felicidade ou Silvia Telles vivendo, à flor da pele, a canção Samba de uma nota só? Como esquecer Elis e Tom no dueto antológico em torno de Águas de março?
A Música segundo Tom Jobim é capaz de repercutir um intenso efeito de encantamento pela falta de interferências narrativas tradicionais. Isso faz com que cada espectador encaixe seu próprio roteiro, demarcando na trajetória do artista aquilo que implica em começo, meio e fim, se é que é possível se falar na figura de um instante derradeiro. Abolida toda e qualquer noção de linearidade, certamente o maior sentido aqui é o de confirmar a imaterialidade da música, dando vazão ao que mais importa: penetrar numa camada onde apenas as sensações fazem morada. Não há espaço para reflexões complexas e tampouco se almeja um grande feito cinematográfico. Como diria o próprio Tom, a linguagem musical basta.
Maravilhoso Jobim!