Ozias Filho
nenhuma pedra
(lugar comum
……do poeta)
sufoca a tampa
detém a cavilha
sustenta a pressão
tudo vem à tona
quando os dedos
vão à garganta
***
verdade submersa
trabalhar incessantemente a mentira da palavra
o discurso viola a abstracção
da boca que o pronuncia
a língua (precoce) permanece hipnotizada no seu túmulo
pelo encantador de serpentes
enquanto a verdade é só saliva no fundo do cesto
***
Génesis
e no princípio
era o silêncio
e Deus
criou o verbo
e aprisionou para sempre
o silêncio dentro do homem
***
as estradas sulcadas na fronte
canais que interrogam
o curso do rio de sal
que não mais turvará o que é cru
enxergar ao longe
remoça a vista
e abre fístulas no peito
***
a árvore
cai por terra a promessa
de mantermo-nos rijos e inalterados
defronte ao assalto da saudade
cai com a lentidão do frio
quando a roupa é parca para impedir
que a pele queime e estale como as velhas madeiras
na memória das gavetas
casas com prazo de validade
que promessa poder-se-ia manter fiel
diante do perfume suspenso
e que não avisa a hora em que descerá
à memória olfactiva?
que compromisso matemático
podemos assumir com a rectidão dos dias
quando basta uma pedra fora do lugar
uma nota dissonante num trilho de comboio
o ranger dos dentes de alguém a dormir
ou o gosto agreste de um beijo que escrevemos
num argumento
para que se desça do pedestal que nos impusemos?
cai por terra a soberba
a árvore que não tem hipótese
face ao predador
***
Liturgia
mesmo que seja eu,
no auto-retrato,
à frente do espelho
é no olhar do outro
que determino
a passagem das horas
***
o calcanhar na língua
a Adriana Calcanhoto
eu vou arranhar
o calcanhar direito
de Adriana
tirar o verso da perna
amanhar o verbo da pedra
conjugar o calcanhar
no presente do futuro
eu vou mastigar a palavra
no lado esquerdo da alma:
a cal que desce
o sal que escorre
das palavras
caídas
o calcanhar que fala o silêncio de
Adriana
ela brinca ela brinda
introduz
o verbo que sabe a chão
Ozias Filho nasceu no Rio de Janeiro e atualmente reside em Portugal. Sua produção poética contempla obras como “Poemas do Dilúvio” (Ed. Alma Azul), “Páginas Despidas” (Ed. Pasárgada) e “O relógio avariado de Deus” (Ed. Pasárgada), dentre outras. Atua também como editor e fotógrafo.
Que belo fluxo verbal, poético! Sem retração os poemas vão entrando pelo pelos poros, alheio à mão que escreve, mas percebendo a luz que irradiam. Parabéns, cara!
Abr.,
Obrigado José Carlos Sant Anna pela gentileza de suas palavras … elas têm o poder de aumentar a responsabilidade de continuar na árdua tarefa de partir pedras.