Janela Poética V

Ozias Filho

 

Foto: Nathalia Bertazi

 

nenhuma pedra

(lugar comum
……do poeta)

sufoca a tampa
detém a cavilha
sustenta a pressão

tudo vem à tona

quando os dedos
vão à garganta

 

 

***

 

 

verdade submersa

 

trabalhar incessantemente a mentira da palavra
o discurso viola a abstracção
da boca que o pronuncia
a língua (precoce) permanece hipnotizada no seu túmulo
pelo encantador de serpentes
enquanto a verdade é só saliva no fundo do cesto

 

 

***

 

 

Génesis

 

e no princípio
era o silêncio

e Deus
criou o verbo

e aprisionou para sempre
o silêncio dentro do homem

 

 

***

 

 

as estradas sulcadas na fronte
canais que interrogam
o curso do rio de sal
que não mais turvará o que é cru

enxergar ao longe
remoça a vista
e abre fístulas no peito

 

 

***

 

 

a árvore

 

cai por terra a promessa
de mantermo-nos rijos e inalterados
defronte ao assalto da saudade

cai com a lentidão do frio
quando a roupa é parca para impedir
que a pele queime e estale como as velhas madeiras
na memória das gavetas
casas com prazo de validade

que promessa poder-se-ia manter fiel
diante do perfume suspenso
e que não avisa a hora em que descerá
à memória olfactiva?

que compromisso matemático
podemos assumir com a rectidão dos dias
quando basta uma pedra fora do lugar
uma nota dissonante num trilho de comboio
o ranger dos dentes de alguém a dormir
ou o gosto agreste de um beijo que escrevemos
num argumento
para que se desça do pedestal que nos impusemos?

cai por terra a soberba
a árvore que não tem hipótese
face ao predador

 

 

***

 

 

Liturgia

 

mesmo que seja eu,
no auto-retrato,
à frente do espelho

é no olhar do outro
que determino
a passagem das horas

 

 

***

 

 

o calcanhar na língua

 

a Adriana Calcanhoto

 

eu vou arranhar
o calcanhar direito
de Adriana
tirar o verso da perna

amanhar o verbo da pedra
conjugar o calcanhar
no presente do futuro

eu vou mastigar a palavra
no lado esquerdo da alma:

a cal que desce
o sal que escorre
das palavras
caídas

o calcanhar que fala o silêncio de
Adriana

ela brinca ela brinda
introduz
o verbo que sabe a chão

 

Ozias Filho nasceu no Rio de Janeiro e atualmente reside em Portugal. Sua produção poética contempla obras como “Poemas do Dilúvio” (Ed. Alma Azul), “Páginas Despidas” (Ed. Pasárgada) e “O relógio avariado de Deus” (Ed. Pasárgada), dentre outras. Atua também como editor e fotógrafo.

 

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2 Comentários

  1. Que belo fluxo verbal, poético! Sem retração os poemas vão entrando pelo pelos poros, alheio à mão que escreve, mas percebendo a luz que irradiam. Parabéns, cara!
    Abr.,

  2. Obrigado José Carlos Sant Anna pela gentileza de suas palavras … elas têm o poder de aumentar a responsabilidade de continuar na árdua tarefa de partir pedras.

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