Lastros imaginativos
Por Fabrício Brandão
Toda vez que nos deparamos com alguma espécie de observação, decidimos primeiro entre desvendar as formas aparentes do visto ou dissecar seus labirintos internos. De súbito, a alternativa inicial nos parece cômoda por sugerir algum deslocamento pelas fronteiras da superficialidade, quiçá um caminho apartado de considerações mais voltadas para uma lapidação. No outro polo, agarrar as entranhas da coisa apreciada pode demonstrar um interesse ancestral pela sondagem dos mistérios que nos acometem.
Mesmo para aqueles que optam pela primeira perspectiva de contemplação, a via interna e que pulsa densa jamais se qualifica como um bem alienável. Pelo contrário, estará ali a rondar os territórios de quem desbrava o mundo e seus correspondentes paralelos percebendo a matéria em estado bruto. Nesse sentido último, o componente diferencial que aponta para a consolidação dos caminhos vai encontrar abrigo ideal no aporte imaginativo de quem cria. E exemplificamos tal ponto de vista com o trabalho de pessoas como Neuza Ladeira, artista que funda o primado de suas acepções visuais no sedutor universo da liberdade conceitual.
Não são poucos os aspectos que podemos enfatizar como sendo cruciais na abordagem de Neuza. E talvez o maior deles seja baseado na capacidade que ela tem de exprimir a atmosfera emotiva que povoa intensamente seus traços de pintora. De posse dum olhar genuíno sobre o mundo, a artista se nega a uma representação orientada e previamente definida das coisas. Suas pinturas evocam uma visão sintética da natureza em seu estágio mais puro, cuja deformação da realidade sugere o modo como percebemos a tudo sem vãs interferências.
Fazendo uso intensivo das cores, Neuza não nos furta um ritual de exaltação à vitalidade e à espontaneidade do gesto. E é justamente isso que delineia a expressividade dos tipos humanos que compõem suas telas. Nesse ínterim, a artista concebe um dinamismo que flui desde a matriz intrínseca e pessoal até o diálogo mais próximo aos fenômenos mundanos.
Num ponto de transição entre referências fauvistas e derivadas da arte bruta, Neuza Ladeira sedimenta três estruturas fundamentais à sua obra: as séries Personas, Natureza e Abstratus. Em todas elas, estão os componentes imprescindíveis para a compreensão dos universos de elaboração da artista. Sem se prender a determinantes canônicos, a criadora confere um especial poder aos componentes intuitivos que permeiam o seu olhar sobre a existência.
Nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, Neuza também se move pelos territórios da poesia, tendo participado de recitais e publicado os livros “Opúsculos” (Anome Livros), “Quarto de Dormir Quarto de Pensar” (Editora Urbana), “Poética Caderno 1” (Editora Catitu). Em sua trajetória, lutou ferrenhamente em prol da democracia no período da ditadura militar brasileira, tendo sido prisioneira política nos anos de 1970 a 1972.
Quando a arte nos incita a penetrar seus domínios, temos razões de sobra para não declinarmos ao chamado. Certamente, uma delas é a larga possibilidade que possuímos de ver o mundo com os múltiplos matizes da imaginação. No caminho, cruzando com as epifanias de alguém como Neuza Ladeira, nos é dado entender também que carregamos em nosso íntimo valiosas ferramentas de apreensão do concreto e abstrato. Cabe-nos apenas eleger o modo como faremos a travessia.
* As telas de Neuza Ladeira são parte integrante da galeria e dos textos da 93ª Leva
A arte de Neuza Ladeira, nos impele à contemplação de suas obras, com os olhos da alma. Não dá para definir de outra forma. Belíssima!