Myriam de Carvalho
Monção
Este ar irrespirável. Quente. A chuva, o vento. Pela janela, olha a agitação que vai no Mar de Java. Onde ela veio parar.
Que raio de homem, maldito anúncio, maldita a hora em que respondi. Mais temível que a aproximação da monção, mais asfixiante que a atmosfera sulfurosa do Krakatoa que ainda paira sobre a cidade, a tempestade que ele veio cravar na minha vida. Uma mulher nativa, e uma concubina – o que eu vim encontrar. Vá para o inferno – mais a posição, o exército, a carreira, e mais o dobro da minha idade. Alcoólico. Violento. O que é que eu faço? Meus dezanove anos, que mal empregados…
Mas ela não perde tempo. E esta sensualidade esculpida nos deuses e deusas que bailam nos portais e paredes dos templos hindus, o corpo é sagrado, o amor para ser completo, tem rituais a cumprir.
Gostei do templo de Krishna. Experimentar a escola do templo. Aprender as tradições, tudo o que é daqui. As danças, a música, é que me fascinam.
Regresso à Europa. Decide-se. O divórcio.
Paris é e será sempre a cidade dos exílios famosos, dos grandes recursos. A cidade das artes, do livre pensamento. Lady MacLeod. Um nome exótico, bom para uma amazona de circo. Ou uma modelo de artistas. Usar o nome do ex-marido? Que é que isso importa? Funciona. Funciona muito bem. Mas não chega.
Começa a ganhar fama como bailarina exótica. Vê que pode competir com Isadora Duncan, ou Ruth St Denis. Toda a gente vai procurar inspiração à Ásia, ou ao Egipto.
Felizmente, não perdi tempo enquanto estive em Jakarta. “Princesa de estirpe sacerdotal, educada nas artes hindus desde a mais tenra idade”. Oh, como fui prevista. E como o público gosta de ser enganado!
Mata Hari, o olho do dia, ou do sol, na realidade, o sucesso das noites. A ostentação do corpo com uma mística única, a cativar o público em geral, e um mundo mais privado, restrito, cada vez mais no círculo dos poderosos, quanto mais abastados, melhor.
Quem na Europa está preocupado com as longínquas Índias Orientais Holandesas? A história que eu conto não oferece dúvidas.
*
E a tômbula da fortuna vai novamente desandar. Ninguém ignora que quando se sobe com tanta avidez, se desce com grande estrondo. Antes da guerra, era vista como uma artista livre, independente, boémia. Mas agora, à medida que a guerra se aproxima, começam a falar da artista. Libertina, devassa, promíscua. Pior, uma perigosa sedutora.
Os seus apoios começam a afastar-se. Olho-me ao espelho, e só confirmo que a idade começa a notar-se… Ai a beleza vai-se-me diluindo.
As suas deslocações através da Europa, em tempo de guerra, chamam a atenção. É a cortesã das muitas altas patentes entre os aliados. É interrogada pela espionagem britânica. Diz que trabalha como agente para a espionagem francesa. Os franceses não confirmam.
*
1917. Da janela da prisão, vê a sua vida deslizar na sua frente. Sabe que não passa da folha de Outono, muito bela, do ocre ao vermelhão, mas que cai da árvore porque está morta. Ninguém a pode suster. Sabe que alguém deixa que seja acusada para se ocultar. Foi assim com Dreyfus. É o que faz ser mulher, mulher só. E essa barriga atulhada de leis, inútil e sem alma, de que é que me serve?
41 anos. Será que vivi tudo? E a soturna da sotaina, a dançar ao vento como uma bandeira negra, não me vai salvar das armas… 41 anos… Já?! Tão depressa?
***
No Café, com Mrs Robinson
Esqueci-me de apontar na agenda que trago sempre comigo o número do seu telefone. Despachei-me cedo, mais cedo do que pensava, entrei no café para lhe telefonar, quem sabe, talvez você estivesse livre, quem sabe, poderia querer descer aqui ao Café. Poderíamos dar à língua.
Mas contrariada constato que me esqueci de apontar na agenda o número do seu telefone. Não percebo por quê.
A alta-fidelidade põe no ar canções dos velhos Beatles. Quanto mais o tempo passa, mais belas são. Mary Lane. Cantam em surdina os amplificadores do Café. Abafam-lhes o som os motores dos carros que passam na rua, as máquinas das bicas*, as conversas das mesas ao lado e as do balcão. Mrs. Robinson. Acho que vivias sozinha, Mrs. Robinson. Há coisas que doem muito, na medula dos ossos da alma é que certas coisas doem. Mrs. Robinson. Onde se meteram os filhos que criaste, o homem, ou os homens quem sabe, que tu amaste?! E agora, imagina, poderia falar com este fulano, se ele estivesse livre, claro, mora mesmo aqui por cima. E depois, o que é que ele pensaria de mim?! Chiça, é melhor estar quieta, quer dizer, é uma sorte não ter aqui o telefone dele. Oh, Mary Lane, sabes muito bem como odeio os homens. Odeio os homens. E detesto as mulheres! Mesmo assim, eles ainda conseguem ser mais sofríveis do que elas. Mary Lane, nunca confies numa amiga. Nunca confies em ninguém. Olha, Mrs. Robinson, venho das compras. Ouves? É o Paul Anka. Há quantos milénios não ouvia o Paul Anka! Interessante, não é? Crazy Love.
Crazy Love. You are my crazy love. De facto, minha querida Mrs. Robinson. É mesmo uma loucura. Porque um amor morre e uma pessoa procura logo outro. Não é a força da vida, nem o tanas. É auto-destruição. Uma pessoa, enquanto tem um pouco de esperança, consome-a. Não a utiliza em proveito próprio. Consome-a, desbarata-a. Claro, é isso mesmo, destrói-se. Depois, quando fica sem nada, vem para aqui como nós, senta-se à mesa do café e fala com as cadeiras. Sabes, Mrs. Robinson, tenho pena da Mary Lane. Ainda tem esperança. Ainda tem quem lhe dedique canções de amor. Ainda tem com que se auto-embalar. Ainda não lhe bateu à porta a hora da verdade. Sweet Caroline. Sweet Caroline. Há pouco eras Mary Lane, agora és Sweet Caroline. Mas daqui a pouco serás apenas a velha Mrs. Robinson, a pobre da vizinha a quem alguém mandará um pratinho de filhós (as que sairem quebradas ou um pouco mais fritas do que a conta) no dia de Natal, coitadinha, consola-se a velhota.
Bem. Ainda bem que não apontei na agenda da minha mala de mão o seu número de telefone. Sinceramente, gosto de falar com homens inteligentes. Sabem coisas que eu não sei, pensam em coisas que eu não penso, analisam a vida com lentes que eu não tenho nem nunca terei. Aprecio isso. As mulheres não. Mas ainda bem que não apontei nesta agenda o seu telefone. Hoje, estou triste.
O meu irmão veio visitar a nossa mãe, com a mulher e o filho. Há anos que não me telefona. Não sei que bicho lhe mordeu. Foi o bicho da vida. Já lhe disse tantas vezes o quanto isso me magoa que hoje preferi ignorá-lo. Pronto. Fui às compras. Comprei muito e gastei pouco. Até me portei muito bem. Claro. Depois não tenho aonde levar tanta roupa, não vou a nada, meto-me em casa a fazer festas aos gatos, a ver o canal 7, até fico com a sensação que tive alguém a conversar comigo sobre coisas que eu gosto. Mas tudo espremido, desliga-se o aparelho, não ficou cá nada. Os gatos são mudos, os filmes dão saltos nas partes conclusivas, passou tudo muito depressa. É só tempo perdido.
Tempo perdido.
Bem vistas as coisas, meu caro, ainda bem que não apontei o seu telefone nesta agenda, não sei porquê, cheira-me a medo.
Com efeito. Imagine que você percebia como estou triste. Imagine que você se punha a pensar que eu lhe estava a pedir apoio. Qualquer coisa como apoio.
Chiça! Mil vezes melhor é ir às compras. Gastar dinheiro que não tenho, gastar tempo que me falta, comprar coisas que não preciso.
Mentir a mim própria. Imaginar que existo.
(*) Em Portugal, chamamos bica à pequena quantidade de café servida nos cafés e restaurantes.
Myriam Jubilot de Carvalho, 1944, portuguesa. Foi professora. Representada em várias antologias e revistas. Divulgadora da cultura e poesia do período do Al-Andalus. Colaboradora no jornal “O Autarca”, de Moçambique. Publica no site brasileiro “Recanto das Letras”. Dois livros de poesia publicados.
Muito bom esse “No café, com Mrs. Robinson”. Uma escrita dinâmica, uma vida oca. Muito bom!