Gramofone

Por Larissa Mendes

 

CRIOLO – CONVOQUE SEU BUDA

 

Criolo

‘Eu não venci nada, ninguém vence nada. A gente só passa’.
(Criolo)

 

Três anos se passaram e Criolo – codinome de Kleber Cavalcante Gomes – permanece honrando as raízes africanas do pai (meu lado África, aflorar, me redimir) e subvertendo a candura cearense da mãe (é que eu sou filho de cearense/a caatinga castiga e meu povo tem sangue quente). O álbum com nome de mantra é o terceiro registro de estúdio do rapper e um dos mais aguardados do ano. Lançado em novembro e novamente produzido por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, ambos integrantes de sua banda, o disco está disponível para audição e download gratuito no site do artista. O trabalho comprova o amadurecimento sonoro do homem com olhar de profeta, que quase abandonou a música antes de gravar o impactante Nó Na Orelha (2011).

É preciso lembrar que no ínterim de um álbum e outro, o músico lançou o CD/DVD Criolo & Emicida – Ao Vivo (2013), filmado todo em GoPro (vencedor do 25º Prêmio da Música Brasileira), além de canções para projetos específicos. A exemplo de seu antecessor, as 10 faixas de Convoque Seu Buda (Oloko Records) continuam aproximando o rap aos mais diversos ritmos, como samba, reggae, soul e até mesmo ao baião. Criolo não só imprimiu definitivamente o gênero na música popular brasileira, como dividiu o palco com alguns de seus maiores expoentes, como Caetano Veloso, Ney Matogrosso e Milton Nascimento, comprovando que, de fato, não existem barreiras para sua poesia.

Criolo

Criolo nos trilhos de “Convoque Seu Buda” / Foto: Divulgação

 

A faixa-título, o rap-oriental Convoque Seu Buda (ao trabalhador que corre atrás do pão/é humilhação demais que não cabe nesse refrão) abre o álbum invocando Shiva, Ganesh e demais deuses para que mantenham nossa fé e equilíbrio diante do panorama atual. A letra incisiva de Esquiva da Esgrima (hoje não tem boca pra se beijar/não tem alma pra se lavar/não tem vida pra se viver/mas tem dinheiro pra se contar) mantém a tônica social, tecendo críticas que vão do racismo ao abuso de autoridade: é o ‘céu da boca do inferno esperando você’. O contagiante soul setentista Cartão de Visita – um dos momentos mais ensolarados do álbum –, parceria com Tulipa Ruiz, discorre sobre o consumismo-ostentação e relembra com bom humor a controversa entrevista concedida a Lázaro Ramos no programa Espelho, do Canal Brasil (Lázaro, alguém nos ajude a entender!), que virou meme na internet. Casa de Papelão (prédios vão se erguer/e o glamour vai colher/corpos na multidão) aborda a especulação imobiliária do centro de São Paulo, enquanto o samba Fermento pra Massa (eu que odeio tumulto/não acho um insulto manifestação/pra chegar um pão quentinho/com todo respeito a cada cidadão) – que bem poderia integrar a roda do Pagode da 27, nos domingos do Grajaú –, discute as manifestações populares.

Enquanto o reggae Pé de Breque (o Criolo Doido respeita o rastafári/e pede licença pra poder cantar/essa nossa teoria secular/és responsável por tudo que cativar) celebra o estilo Bob Marley de ser, o baião Pegue Pra Ela tem um quê de Chico Buarque e deixa qualquer um com vontade de puxar seu par para dançar. A densa Plano de Voo (e por mais que eu tente explicar, não consigo/de tornar concreto abstrato que só eu sinto/é como se eu ficasse aqui nesse cantinho/vendo o mundo girar no erro abusivo), que flerta com o hip hop de Ainda Há Tempo (2006), seu primeiro álbum, tem a intervenção do rapper Neto (Síntese) e atinge o clímax do álbum. Duas de Cinco (e eu fico aqui pregando a paz/e a cada maço de cigarro fumado/a morte faz um jaz entre nós), lançada inicialmente em 2013, em EP homônimo, faz as honras para ‘tombar o mal de joelhos’ no experimentalismo regional de Fio de Prumo (Padê Onã), que tem participação de uma onipresente Juçara Marçal e fecha o álbum no melhor estilo africano.

É notável que o discurso de Criolo está cada vez mais contundente e aprimorado para além da crueza periférica. Em sua poesia abstrata, ele responsabiliza a miséria, a inveja, o desamor e principalmente o consumo de drogas pela falência do ser humano. E cita ainda a depressão como “a peste entre os meus”. Os arranjos estão cada vez mais experimentais e ousados, assim como a arte do álbum, que se apropriou do acervo digital liberado pelo Museu Nacional da Holanda (Rijksmuseum) para construir uma bela colagem, onde a figura central é um oficial da Corte da Ilha de Java (Indonésia) de saiote, pintado a óleo, em 1820, por um artista não identificado – e que se assemelha muito ao rapper.

Em tempo: assisti o terceiro show de lançamento da nova turnê, no teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, que contou com os convidados especiais Síntese, Tulipa Ruiz e Ricardo Rabelo (Pagode da 27) e afirmo que Criolo continua em perfeita comunhão com seu público. Ao final da celebração como costuma chamar seus espetáculos , o artista recebeu calorosamente os fãs. Posso dizer que o abraço apertado do messias do Grajaú conforta e abençoa. Convoque Seu Buda é o relicário do ano e Criolo não passará tão cedo.

 

 

 

Larissa Mendes não é uma pessoa de muitas crenças, mas ainda acredita no ser humano.

 

 

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1 comentário

  1. Um belo convite para conhecer o trabalho de Criolo, um bom panorama do CD. Muito massa!

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