Sérgio Tavares
A fuga
Para o amigo Bernardo Kucinski
O menino foi antes. Fazia uma semana. Agora era a vez dos pais prepararem-se para a fuga. A mãe foi a primeira a aprontar a mala. Sentada no sofá da sala atravessada pela penumbra das cortinas cerradas, ouve os passos do marido num vaivém acelerado do escritório à cozinha. Arrasta objetos, joga-os no chão, rasga papéis. Dá vida a um descontrole que não a alcança. Ela apenas ouve.
Então o cheiro adocicado de fumaça recende pela casa. Logo o ambiente fechado é preenchido por uma massa nebulosa. A mãe se levanta e dirige-se até a soleira da cozinha. Vê o marido intranquilo, queimando, na boca do fogão, documentos, fotografias, relatórios mimeografados e páginas do manual de guerrilha e de jornais clandestinos. Em volta dele, a porção de vapor é mais densa. Como se ao incinerar o passado, incinerasse também a si.
A imagem lhe resgata a memória de uma canção antiga. Passa um tempo olhando-o, enquanto a letra flui remansosamente em sua cabeça. O marido não a percebe em momento algum. Focado em não deixar vestígios e tampouco ser flagrado na janela, embora coberta há dias. A mãe se cansa e retorna ao sofá. O corpo já não é mais o mesmo com o chumbo sobre os ombros. Toca na mala aos seus pés, abastecida com mudas de roupa, cartas do irmão, passaporte falso, livros de poesia e um álbum de retratos do filho. Sente vontade de pegá-lo, mas sabe que mexer no interior pode gerar um contratempo, e precisam partir o mais breve. Fugir e reencontrar o menino.
A cozinha ainda despeja fumaça e cacofonia. Não será agora, aparentemente. Põe-se de pé outra vez e caminha até o quarto do filho. Afasta a porta. Está do jeito que ele deixou, uma desordem encantadora. A cama desfeita, gavetas expostas. Uma passeata de brinquedos pelo tapete. O menino não pôde levar nenhum deles, imagina que deve sentir falta. Agacha-se e pega um soldadinho de plástico. Enfia no bolso de trás da calça jeans. Passa somente a observar. A ausência. Um quarto infantil sem uma criança é a reificação da saudade.
Quando volta à sala, o marido está de cócoras diante de uma mala aberta. O olhar inquieto denuncia o desgoverno sobre os gestos, quase um rompante. Vai atulhando roupas, sapatos, cintos, livros de economia e de história do Brasil, passaporte falso, um revólver automático, cartuchos e uma fita magnética de rolo. Transpira excessivamente, o linho da camisa se emplastra no tórax. Ela o observa, não trocam palavras. Ele fecha a mala. Ato contínuo, dispara até a estante e pega uma folha de papel e caneta. Debruça-se sobre a mesinha de centro e começa a manuscrever uma relação com nomes de empresários, diretores de agências de publicidade e de jornais que apoiam o regime. Patrocinadores de prisões arbitrárias, de torturas, de desaparecimentos. Produzir, com o próprio punho, a lista é seu último ato de resistência.
Termina e deixa a folha explícita sobre o tampo. Pega a mala, a esposa faz o mesmo. Caminham agora juntos até a saída dos fundos. Com cautela extrema, destranca a porta e abre uma ínfima brecha. O ar fresco os atinge. A mão na maçaneta treme. Sabe que não podem se precipitar ou irão cair. O ponto não é mais seguro. Eles estão lá fora, à espreita, os agentes disfarçados. O sujeito de ray-ban tomando café no balcão da padaria. Aquele outro de perfil, a cabeça encoberta pelo capacete do orelhão. Encostado na lateral da kombi, de mangas de camisa. Atrás da face externa do portão. Ao redor dos muros baixos da casa. Quantos eles são? Não deve perder o foco, assim versa o manual. Tem de proteger a esposa, a companheira.
Mete os dedos pela bainha da camisa e segura o cabo da arma presa ao cinto. Encosta o ombro na madeira da porta, olha para a esposa, assente e dá um tranco seco. A abertura é sucedida por uma escapada pela garagem, até a traseira do cupê Uirapuru azul-ferrete. Abre o porta-bagagem e joga as malas. Mantendo o ritmo frenético, separam-se pelas laterais e embarcam nos assentos dianteiros.
Os vidros fechados logo condenam a cabine ao gás tóxico de suas respirações. O medo, a aflição, a possibilidade de um ataque a tiros. Precisam sair dali o quanto antes, precisam da chave. O pai vasculha os bolsos com agressividade, até que encontra o pequeno estojo. Ali está, a chave para que possam finalmente fugir. Ele retira a tampa e exibe as cápsulas de cianureto. Ele pega uma, a esposa fica com a outra. Colocam delicadamente entre o vão dos molares. Entreolham-se, por alguns segundos. Em seguida abraçam-se e as mastigam.
Os corpos entram em convulsão, dirigidos pelo veneno. A boca aflora em espuma, os olhos reviram. Passam a enxergar o mundo interior, onde a mãe vê o menino e o marido. Estão na praça, jogando futebol sobre a grama. É um domingo. Eles não deviam se expor assim, mas uma criança precisa de diversão, mesmo em tempos sombrosos. Então a bola corre para além do gradil de proteção. O menino dispara atrás. A praça está à margem de uma autopista, a bola corre para lá. O menino não se detém. Os carros zunem.
A mãe berra e corre. O pai berra e corre. A bola corre. O menino não se detém. O caminhão não se detém. Porém, desta vez, o motorista consegue desviar a tempo e o menino salva a bola. O pai estanca e serena. A mãe o ultrapassa e choca-se contra o corpo frágil da criança. Segura-a, beija-a, chora. Tem contra si, para sempre, o filho que é seu. O filho, para sempre, envolto em si. A morte não é uma luta, é um abraço.
Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala” (Record, 2010), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura. Tem textos publicados em jornais, revistas e sites literários nacionais e internacionais. “Queda da própria altura” (Confraria do Vento, 2012), sua obra mais recente, foi finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura.
Muito forte! Tão bem descrito que até dá pra ver cada imagem, cada cena, cada momento…
Neuzamaria