Da empatia ao conto – uma leitura de três grandes obras
Por Anderson Fonseca
Existem escritores que são mais do que essenciais na construção do intelecto e da sensibilidade, são artistas plenos em sua vocação, cientes de sua natureza bizarra – inapropriada para o meio em que nasceram. Acidentes da natureza; o mais belo milagre. É preciso uma visão além da realidade, ser dominado por uma ótica que desvenda a verdade oculta sob o véu da aparência. Raros são os escritores que nos despertam este olhar, por isso são essenciais numa leitura. Logo após tê-los lido, nos vemos a nós mesmos diferentes e tudo o que nos cerca. Alguns nomes fazem parte do rol dos grandes contadores de histórias, os quais com sua incrível imaginação moldaram o imaginário de milhares espalhados pelo mundo. Entre tantos nomes, escolhi três, cujas obras impactam quem as lê. Livros divertidos, inteligentes, bem construídos e singulares na sua produção, pois refletem a alma de quem os criou. É claro que, para sentir como também entender a ideia que cerceia uma obra, é necessário estar dotado de uma natureza empática capaz de compreender com aproximação sutil o espírito do outro. É um ato de amor a leitura e exige renúncia.
Desses três escritores que nos ensinam a arte de contar histórias, um deles é o autor tcheco Franz Kafka. No tomo Parábolas e Fragmentos, Kafka reescreve parábolas judaico-cristãs e elabora contos que não chegam a serem concluídos, mas nem por isso, percebe-se na fragmentação da narrativa uma incompletude, ao contrário, o fragmento torna-se uma nova narrativa, cujo significado é aberto e circular, isto é, há uma infinidade de leituras e desleituras da mesma estória. Nesta pequena obra encontramos clássicos da literatura kafkiana como O silêncio das sereias e Diante da Lei, assim como Poseidon e Da Justiça, etc. São pedaços de textos, todavia, não transparecem essa fragmentação. O que se nota é o trabalho de construção narrativa de Franz Kafka, uma linguagem bem trabalhada, ocultando em cada elemento articulatório um novo significado a ser descoberto.
Outro autor que vale a leitura é o escritor francês Pascal Bruckner e seu livro Bichos-Papões Anônimos. O livro é uma reunião de duas fábulas sobre a natureza das emoções humanas. O primeiro conto Bichões-Papões Anônimos narra a história do bicho-papão Balthus Zaminski que após 25 anos de atividades em comer criancinhas, promete a seu criado Carciofi “que nunca mais comeria crianças”. Apesar de resistir, seu instinto lhe fala mais alto. Ele que vem de uma família de bichos-papões, é tratado, após a morte de seu pai, pelo criado como um viciado, um doente, que precisa de tratamento clínico para abandonar o vício natural de comer crianças. Com muita insistência e esforço de Carciofi, Balthus abandona sua condição, não antes sem sacrificar-se em nome daquelas criaturas pelas quais, desde jovem, tinha uma nobre feição. O ato é cometido como um grande espetáculo no circo. Balthus morre lançando-se num grande caldeirão e seu corpo é devorado depois pelas crianças que assistiram ao espetáculo e que desconheciam o círculo natural da vida, aquele que come um bicho-papão torna-se também um. O segundo conto, O apagador, narra a história de Falcone, um velho triste e ranzinza, que cria uma fórmula química capaz de apagar os seres e os objetos. Mas sua intenção é apagar o rosto das crianças felizes que ele diariamente avistava. Falcone consegue afastar de si aquela felicidade, mas não completamente, havia uma criança cujo sorriso o afetava profundamente e por mais que lutasse a imagem de seu sorriso persistia em sua memória. São dois contos belíssimos, escritos com mestria, possuídos de uma ironia refinada, um humor suave e uma linguagem simples que se aproxima da ingenuidade ou naturalidade de narrar. Você lê as histórias e se envolve tanto com elas que esquece tratar-se de uma narrativa escrita; a sensação é de estar ouvindo-as.
O terceiro autor é Augusto Monterroso e seu pequeno livro de contos O eclipse. Monterroso, dono de uma linguagem que reproduz a narrativa oral com enredos fabulosos, o escritor gualtemalteco nos oferece três histórias exemplares de sua mestria na arte da narração. A primeira é o conto-título da obra. Em O Eclipse lemos a história de frei Bartolomeu Arrazola, que após ser capturado por indígenas na selva da Guatemala, planeja surpreendê-los com seu conhecimento científico e relata para os índios que sua morte provocaria um eclipse solar. No entanto, quem é surpreendido é o próprio frei, pois os indígenas maias já tinham conhecimento do eclipse. Assim, o frei que acreditava sair vivo da situação, é sacrificado para agradar ao deus sol. Outra história é o microconto Dinossauro, cuja narrativa, embora breve, nos proporciona inúmeras interpretações do evento. O conto Um de cada três é sobre um homem que recebe uma carta com a proposta de confidenciar seus prazeres e dores à milhares de ouvintes através de uma rádio. Ao ler a carta pensamos conosco quantos gostariam que apenas um dentre muitos ouvisse sua história, vida, sentimentos e recebesse de seu ouvinte a compaixão.
Três autores que juntos formam o pensamento de um contista. A leitura de cada construção narrativa acaba criando um modelo ideal para a elaboração de outros contos. Por isso, vale a leitura. Mas de nada adiantará a leitura destas obras se não se permitir um sentimento empático pelo conto e seus personagens. Isso é mais do que necessário, é vital para o escritor que se deseja tornar.
Anderson Fonseca (Rio de Janeiro/Ceará) é autor do livro de contos “O que eu disse ao General” (ed. oitava Rima, 2014), considerado pela revista Eels um dos melhores de 2014, e da obra “Sr. Bergier & outras histórias” (ed. Rubra Cartoneira, 2013).
É bom percorrer as pistas,talvez, influências do grande livro “O que eu disse ao general”.