Caminhando descalço sobre o piso de tábuas
Por Adriana Zapparoli
Para sobrevoar o livro “Nagasakipanema” (Editorial Práxis, México, 2011) de Víctor Sosa há de se estar disposto ao acolhimento da contradição: pairar com uma asa por sobre a bomba atômica e com a outra sobre a ambiência delicada de uma praia brasileira.
Coleóptero no ambiente. Atravessa janelas, o nácar das savanas, o desprendimento da infusão (jasmim), os anais de Larousse abertos em sua boreal quietude.
Coleópetero en lá habitación. Atraviesa ventanas, el nácar de las sábanas, el desprendimiento de la infusión (jasmín), las analectas del Larousse abierto en su boreal quietud (46)
Posiciono-me perante a tradução de poesia na qualidade de leitor e nunca como tradutor profissional que viaja permanentemente entre duas línguas. Interessam-me, sobretudo, as emoções e as experiências que recebo de uma construção poética agregada à liberdade de sua manifestação e cercando o leitor para diferentes saídas e entradas diante das múltiplas possibilidades.
Víctor Sosa (Uruguai, 1956) é um poeta de inserção, e começa o seu livro anunciando um motim com uma capacidade imagética muito sofisticada. Há liberdade em código de escrita. No decorrer do livro, os textos apresentam a quebra da sintaxe. As palavras assumem significado próprio. São curvas e híbridos com um toque de surrealismo, em tempos históricos, com a mistura incomum de diferentes elementos.
Há ratas no porão – lhe sussurra ao ouvido a advogada – mas ele entende mal e diz: ratos no ático.
Hay ratas en el sótano – le susurra al oído la abogada – pero él entiende mal y dice: ratones en el ático (163).
Há manifestação de inteligência criativa. Além da força sonora há conflito e tensão de linguagem. Muitas vezes, a leitura promove a sensação de se caminhar em areia movediça. Identifica-se uma tentativa de recompor a confusão mental que o poeta sofreu no momento de sentir ou intuir a prosa-poética. Ironia e criatividade. Cada prosa-poética possui uma velocidade de respiração própria e organizada.
Pode ser cancerígeno se olhar de frente… Catorze dedos na garganta da menina puxaram o cação ali atracado.
Puede ser cancerígeno si se mira de frente… Catorce dedos en la garganta de la niña sacaron al cazón ahí torado. (53)
Nagasakipanema é um livro escrito em castelhano, mas contaminado por outros idiomas. Utiliza-se de termos técnicos, de referenciais acadêmicos em ciências médicas e biológicas de maneira pontual.
O caráter espasmódico do ódio feito que se deletara. A vasodilatação da bochecha chegou a tal ponto que desviou o eixo da medula espinhal e secretamente, entre a quarta e quinta vértebras, uma protuberância côncava que podia se palpar desde o paladar.
El carácter espasmódico del odio hizo que se deletara. La vasodilatación de la mejilla llegó a tal grado que desvió el eje de la médula espinal y secretó, entre la cuarta y quinta vértebra, una gibosa protuberancia que podía palparse desde el paladar. (207)
Nagasakipanema não é um livro fácil. O autor trata a poesia que pode se tornar um tormento para o seu leitor. Porque fatalmente o faz mergulhar na sua brutal ignorância ou ascender a uma condição intelectual imensurável. Dada a sua robusta condição formal, a poesia exige do leitor paciência. Ele deverá investigar a linguagem e desfazer o poema para buscar o seu entendimento.
Apenas alguns golpes na nuca apressadamente dados com o cotovelo; um trovejar amostrado de metatarsos amplificado pela fossa séptica.
Apenas unos golpes en la nuca apresuradamente dados con el codo; un sampleado tronar de metatarsos amplificado por la fosa séptica. (101)
Investigar a forma permite reavaliar a capacidade múltipla e inquietante de pensar e agir. Diria que esta é exatamente a sua essência; ela é única e, ao mesmo tempo, múltipla.
E segue a prosa-poética, que se esquadrinha em exercício estilístico inventivo rico, onde Víctor não precisaria finalizar o livro.
Você participa, apesar da enxaqueca, e caminha descalço sobre o piso de tábuas sentindo os tendões, os músculos, o movimento e a resistência de suas pernas diante de um exercício sem sentido.
Te incorporas, a pesar de la jaqueca, y caminas descalzo sobre el piso de tablas sintiendo los tendones, los músculos, el movimiento y la resistência de tus piernas ante um ejercicio sin sentido. (123)
Traduzir Víctor Sosa para o português é um desafio. Diria quase um delírio. Porque ele é livre. Nele nada é tão linear, tão lógico e previsível.
Referências:
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
HUTCHEON, Linda. Poética da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.
(Adriana Zapparoli (Campinas – São Paulo) é escritora e poeta. Realizou pós-doutoramento pela Universidade Estadual de Campinas (SP). Publicou A Flor da Abissínia (versão bilíngue), em 2007; Cocatriz, em 2008; Violeta de Sofia, em 2009; Tílias e Tulipas (versão bilíngue), em 2010; O Leão de Neméia, em 2011; Flor de Lírio (versão bilíngue), em 2012, todos editados pela Lumme Editor (Bauru – SP))