Aperitivo da Palavra

Vestígios na navalha de aço

Por Márcia Barbieri

 

 

 

 

 

Paisagem com cavalo (Editora 7Letras) é um romance-ensaio, uma metaficção, uma narrativa que brinca e desloca os conceitos literários. Já na página de abertura, deparamo-nos com um narrador nada complacente com o leitor, é um narrador saído das profundezas do subsolo. Embora se trate de um romance de estreia, ouso afirmar que Halley Margon queimou tantos outros antes deste, recuso-me a acreditar que estou lidando com um romancista inaugural.

Halley é o tipo de escritor que não precisa mendigar por leitores, não espera aflito por eles, até suspeito que os renega*. Mas, se por acaso os conquista, não os subestima. O autor em questão não precisa alimentar e nem manter os cães na soleira, quem decide segui-lo terá que acompanhar seus devaneios, embrenhar-se nas suas matas fechadas por conta própria, porque ninguém mais dormirá um sono sem pesadelos, ninguém sairá ileso ao corte de sua narrativa. Como o narrador alerta, a previsibilidade é uma das características mais nobres do aço. Talvez, o autor comungue dessa opinião, pois ele não tem medo de começar o romance contando sobre um suposto assassinato. Tal ousadia é a marca dos grandes, dos destemidos, como Sábato em O túnel. Ele tem essa coragem porque não precisa de leitores, somos nós quem precisamos dele.

Encontramos, nesse romance, todo tipo de linguagem. Em algumas partes, experimentamos uma linguagem mais poética, em outras, mais filosófica, em outras, tão fria e direta que se assemelha a uma literatura médica.

Tanto a arquitetura quanto a linguagem desse romance são impressionantes, ainda mais em uma época como a nossa em que se procriam (como se procriam bactérias e tão nocivas quanto) fórmulas fáceis. Ele não é um autor que acredita na facilidade, no enxugamento das frases, na eliminação da língua, é experimental e sabe que é necessário se submeter aos caprichos da escrita. Sabe que a escrita se esconde nas brechas, nas lacunas, nos devires, no fora de Blanchot. A língua é um fosso e apenas os escritores autênticos têm permissão para escavá-la.

No final do trajeto, percebemos que o verdadeiro drama relatado não é o assassinato, ele é ínfimo comparado ao resto. A verdadeira tragédia é o esquartejamento do homem contemporâneo, é a apresentação de um sistema (político, social, econômico, pessoal) precário, de engrenagens que não funcionam, não acoplam. A tragédia é a exposição de rostos sem face, de rostos suturados, de uma humanidade em estágio avançado de putrefação.

* O ouvinte não tem nenhuma importância. Não é para alguém que você tanto anseia contar. Você apenas conta/relata porque precisa. (p. 19)

(Marcia Barbieri é paulista. Possui textos publicados nas Revistas Literárias Coyote, Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas e Meio Tom. Tem três livros publicados: dois de contos e um romance. É colunista da Revista Literária O BULE)

 

 

 

 

 

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2 Comentários

  1. Pronto, mais um pra conferir. Vamos lá!

  2. Usando as palavras de Juliano Pessanha, pelo que Márcia nos escreveu, há cheiro de ferida nesta obra. Um atrativo para todos os desjustados.

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