Aperitivo da Palavra I

A loucura nossa de cada dia

Por Neuzamaria Kerner

 

Capa - A loucura dos outros

 

Antes de dizer qualquer coisa, o título que uso nessa resenha de “A Loucura dos Outros”, estonteante livro de contos de Nara Vidal, é importante porque, na própria palavra que sugere insanidade, encontramos a “cura” das paixões que desarranjam a alma. Mas como viver sem esse desarranjo, ser feliz no meio de um mundo tão louco?  Será que a loucura existe somente nos outros ou é vista apenas com nossos olhos cheios de razão sempre a nosso favor?

O drama feminino percorre todos os contos vividos por 21 personagens: Ifigênia, Marta, Ana Rosa, Vanessa, Cecília, Adriana, Maria Dulce, Selma, Lúcia, Amanda, Ana, Marelena, Rita, Olívia, Sílvia, Flávia, Érica, Regiane, Débora, Miriam, Íris. Todas elas envolvidas em dramas que lembram as tragédias gregas, mas, ao mesmo tempo, sendo difícil classificar cada conto dentro de correntes literárias estudadas nas escolas porque há um pouco de tudo. O subjetivismo com sua falta de clareza do movimento simbolista; a prosa realista com seu caráter ideológico onde são discutidos problemas sociais (especificamente num ambiente restrito do universo feminino), quando a autora explora, sem nenhuma hipocrisia, sem pudores e numa linguagem bem clara focando sexualidade, a exploração, a infelicidade, a prostituição, o incesto, a insatisfação da figura feminina atemporal.

Se poderia dizer que são contos de escola naturalista pela forma como a palavra é usada e as ações das personagens com suas histórias tão chocantes que deixam o leitor com os dentes travando e rangendo ao mesmo tempo. No entanto, se poderia dizer que é uma prosa com características existencialistas bem marcantes quando é mostrado o ser humano com suas circunstâncias subjetivas, com sua ânsia de liberdade, mas ao mesmo tempo aprisionado no meio em que vive.

Acredito, porém, que qualquer tentativa de classificação seria desnecessária porque a autora certamente não esteve preocupada com isso enquanto escrevia sobre a alma nua e dolorida da mulher.

Não foi à toa que Nara Vidal abriu o livro, tendo como epígrafe um poema de Silvia Plath – Canção de amor da jovem louca – já que os contos tratam da loucura encoberta pelos cílios de suas personagens. Depressivas, algumas delas cometem suicídio por não suportarem o peso da vida, assim como a poetisa que termina seu texto com os versos abaixo que sinalizavam sua depressão e suicídio:

(…)
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.
Imaginei que voltarias como prometeste
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

 

Interessante também observar que a contista dedica o livro a Ismália. Seria uma homenagem e referência ao poema de Alphonsus de Guimaraens? Certamente. A loucura, o miolo da loucura está bem presente. Vejam:

 

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…

 

O desfile das personagens se inicia com Ifigênia, num conto dolorido e surreal, a mulher que perdeu a cabeça (literalmente) por amor ao palhaço Vareta. Em seguida, vem Ana Rosa, conto com um depoimento estarrecedor de um traficante assassino, seu marido, que a amava loucamente. E Cecília? Não conseguia mais olhar para o marido. Será que se suicidou no metrô? Nara Vidal brinca com a imaginação do leitor, deixando-o na incerteza. Maria Dulce, nome doce, coitada – a sem coração – deixa cair o filhinho de dois meses, talvez por não suportar que ele viesse a passar pelas mazelas da vida com a coragem necessária. Lúcia, a que fazia queijo de cabras, depois de a fabriqueta ser fechada o marido fica desempregado e não consegue mais ver as estrelas que tanto apreciava com a mulher. Amanda sofria de baixa autoestima e era espancada pelo marido e ainda achava que ele tinha razão. Medo? Vergonha de ter um casamento falido? O que leva uma mulher a sofrer esse tipo de maltrato e ainda ser grata pela comida que o marido bota na mesa? Entre outras comoventes personagens, trago aqui Marelena, a garotinha que limpava a bunda compulsivamente até se ferir. Transtorno obsessivo-compulsivo. O que teria levado a garotinha a adquirir essa doença? Meio em que vive? Abuso sexual? A autora sacrifica o leitor não deixando claro o porquê… é preciso uma ginástica mental para descobrir. Negligência dos pais? O que houve ali?

É interessante conferir a vida das outras personagens para tentar entender suas loucuras. Não se fala aqui da loucura sobre a qual Aristófanes designava na Idade Média. Algo até como divino. “Enlouquecer é ser submetido à angústia e ficar prisioneiro do universo do não sentido, em que nossa linguagem fica aquém da possibilidade de interpretar o que experimentamos” (Birman, 1983). Em todos os contos a vida dessas mulheres anda de mãos dadas com a “loucura”, a angústia, a morte, mesmo que ela não mate a personagem de morte matada ou morte morrida ou, quem sabe, a morte de quem continua vivo.

Creio que a loucura tratada neste denso livro de contos é a insensatez, o desencontro da coerência com a incoerência de pessoas que correm sem saber por que, para onde a fim de encontrar não sei o quê. Talvez essa loucura de que fala a autora seja a do miolo mole mesmo.

Em verdade é a loucura que nos faz viver felizes, lembrando Erasmo de Rotterdam em seu livro Elogio da Loucura, escrito em 1508. Assim como a loucura é a personagem de Erasmo, ela também se reinventa nos contos de Nara Vidal, mostrando quão hipócritas somos de não termos coragem de aceitar que os loucos existem para chamar os sãos à razão; mostrando que o desmiolamento alheio, em seus contos do livro “A Loucura dos Outros”, pode ser aceito e criticado, mas não as nossas  loucuras nossas de cada dia, principalmente no universo feminino. Nesse universo, há que se ser louco para suportar o peso da razão e encontrar um pouco de felicidade.

De repente, encontramos uma cura na Loucura das personagens da autora. Vejamos!

Neuzamaria Kerner, baiana de Salvador, é professora e escritora. Tem publicados os livros: “Fragmentos de Cristal”, “Eu Bebi a Lua”, “A Presença do Mar na Prosa Grapiúna”, entre outras publicações em revistas literárias. Seu mais recente rebento poético é “O Livro-Arbítrio das Evas – Dentro e Fora do Jardim” (Ed. Editus – 2014).

 

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