Tempestades de dentro: algumas notas sobre o livro Espaço visceral, de Daniela Galdino
Por Alex Simões
São 33 as vértebras que integram a coluna do ser humano, do cóccix até o pescoço, onde se encontra o espaço visceral. 33, dizem, é a idade de Cristo. 33 foi o número mais repetido em 2016 por mulheres indignadas em alusão ao número dos violentadores de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro. 33 poemas integram o livro Sobejos do mar, de Lívia Natália. Talvez sem nenhuma relação direta com os diferentes eventos supracitados, 33 é o número de poemas que integram o Espaço Visceral, 3º livro da itabunense Daniela Galdino, lançado este ano pela editora Segundo Selo. Mas, em se tratando de poesia, sabemos: coincidências não existem.
Trata-se de um tomo de poesia erótica, assunto sobre o qual a poeta vem se debruçando há algum tempo, tanto que foi o mote do número 03 da Revista organismo, organizado por ela e Cazzo Fontoura e publicado no ano passado. Devemos tomar erotismo aqui em seu sentido mais amplo, por não se tratar tão somente de uma relação sensual entre corpos humanos, mas de como um corpo, o do enunciador, se relaciona sensualmente com tudo o que consigo fricciona: o próprio corpo, a língua concreta e abstrata, a natureza em todas as suas dimensões e o plano das ideias. É também um espaço de encontros viscerais entre mulheres e suas elaborações verbais e não verbais em diálogo com a obra. Joana Veloso, assinando o projeto gráfico primoroso e as ilustrações, com seu traço delicado, nos dá pistas de como esses corpos se encontram imersos e recortados do tronco para baixo e enredados pela flora que emerge do texto. O volume também traz textos de Karina Rabinovitz, Cida Pedrosa e Mônica Menezes, mulheres, poetas, não necessariamente nessa ordem, que nos ajudam a percorrer esses caminhos escorregadios elaborados pela verve da poeta.
Daniela Galdino segue adepta das formas curtas da lírica, com versos livres e igualmente curtos, numa poética que ao mesmo tempo se propõe mais logopeica, posto que investe muito em jogos de palavras, arriscando-se, às vezes demasiadamente, pela via das construções de ideias a partir deles, numa sensualidade que é intelectual e politicamente programática, não deixando de ser por esse mesmo procedimento melopeica e fanopeica. Aqui imagens, sons e ideias se fundem com o único objetivo: seduzir-nos, enredar-nos na teia de palavras da poeta e na sua floresta umedecida com as tempestades de dentro, para usar uma expressão da autora nesse difícil exercício de explicar de que trata seu livro. Afinal de contas, um livro de poesia trata de tudo o que couber na poesia. Feita a advertência, seguem alguns notas de campo nada sistemáticas de um leitor que andou descalço nessa floresta úmida de tempestades de dentro.
Surge diante de nós, em diversos poemas, uma flora inusitada, úmida, no “pasto fértil”, “planta eriçada ao léu” “nesta primavera de fugas”. “Cachos de murta”, “pinhão roxo”, “pé de mulungu”, “trigo”, ”almíscares”, “horta de hiatos”, a lua que “enfolha” são alguns trechos de diversos poemas em que vemos uma vegetação diversa e, quase sempre, úmida, nesse “mapa” sobre o qual fazemos nosso trajeto-leitor. Em “arada”, como em outros poemas, essa flora também pode se apresentar como resultante de um labor, seja no título, seja nos versos finais: “levo fachos de gritos/aonde me querem muda//replantando-me/ dou cestos fartos”, sendo a ambiguidade da palavra “muda” um reforço da ideia de que esses elementos da flora são metáforas da força do sagrado feminino, pelo domínio das tecnologias ligadas à fertilidade da terra. A flora aparece também como cúmplice de transformações dessas subjetividades estilhaçadas, múltiplas e em constante processo de (des)identificação, como no poema Círio Torto:
seja pé de mulungu
testemunha auricular
das frestas e dos fartos
Nesse livro, temos uma sucessão de jorros de gozo, lascívia, sensualidade, “conversa de molhares”: poesia. O que não é poema é inchaço, tropeço, dormência, covardia (o poema que não escrevi, p. 13). O que é poema jorra em oxímoro: “quero fogo na Baía de Todos os Santos” (p. 15). Tudo é fértil, porque jorra, é úmido: “só não verde quem não quer” (p. 5).
O erotismo presente nas páginas de “Espaço Visceral” é ativista, feminista, e põe o homem em seu devido lugar de coadjuvante de um processo de autoconhecimento que passa pelo próprio corpo da poeta, por outros corpos, não só humanos, e nas fricções resultantes desses encontros. Reparem, no exemplo a seguir, que não pode ser por acaso (como não pode ser o número de vértebras e o número de poemas no livro): a ausência do pronome pessoal do caso reto para a 3ª pessoa, masculino singular*, no poema “trans-bordar” (p. 51):
(eu) organizo o meu lugar de fala
(tu) desarranjas o mapa mental
(ela) cospe águas de chuva
desmanchadas espumas
sobrevivemos
três criaturas
consagradas à transgressão
Por causa do livro de Daniela Galdino, descubro que a anatomia define o espaço visceral mais ou menos como um compartimento que fica à altura do pescoço e “é limitado superiormente pela cartilagem tiroideia e, claro, pelo osso hióide, e inferiormente pelo pericárdio fibroso. Engloba a faringe, a laringe, a parede anterior do esôfago e traqueia. É frequentemente atingido quando de perfurações esofágicas e corpos estranhos.”** No mais íntimo de nosso corpo, somos mais suscetíveis ao ataque de corpos estranhos e infecções. Expor o que há de mais íntimo é também expor o que há de mais vulnerável em nós e só as fortes sabem exercer esteticamente essa exposição como um ato político. Anna Akhmátova, poeta russa evocada na apresentação de Monica Menezes, é um exemplo de muitas poetas históricas que insistiram a qualquer custo a dar forma e permanência ao seu trabalho com a linguagem.
Sigo lendo e relendo sinais, catando folhas dessa floresta úmida, macerando com as mãos e sentindo o cheiro e os efeitos em meu corpo de homem atento e ciente de meu não lugar nessa floresta. Aqui, como sempre tem sido com meus encontros com os poemas e performances de Daniela Galdino, eu também “coleciono afogamentos” e “navego, sorvo e corro/ até recuperar razão”. Deixo-me molhar pelos jorros dessas tempestades de dentro.
* #elenão
** Cf. COIMBRA et al. Espaços cervicais: Anatomia descritiva e importância clínica. Revista Portuguesa de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial. v. 55, n. 3 (2017). Disponível em URL < https://www.journalsporl.com/index.php/sporl/article/viewFile/587/473 >. Acesso em: 30 set. 2018.
Alex Simões (1973) é poeta e performer soteropolitano. Acaba de lançar seu quarto livro de poesia intitulado “trans formas são” (organismo Editora) e vem atuando na cena cultural baiana desde os anos 90, com poemas e performances que põem em diálogo a poesia, a música, as artes visuais e o artivismo. Publicou poemas em diversas antologias, coletâneas e revistas nacionais e internacionais, traduzidos para o inglês e o espanhol.