Aperitivo da Palavra I

Uma leitura de Cinevertigem, livro instigante de Ricardo Soares

Por Geraldo Lima

 

 

Cinevertigem, de Ricardo Soares, é um livro inovador, provocador, escorregadio. Publicado pela Editora Record, em 2005, é obra que cruza a fronteira dos gêneros literários e busca, com certeza, ampliar os horizontes da criação literária. Durante a sua leitura, o leitor provavelmente indagará: isso é prosa ou poesia? É um romance ou um longo poema?

Num primeiro momento, o leitor, certamente, será tentado a ler essa obra como um longo poema, já que o ritmo, as aliterações, as rimas internas e as imagens atestam isso: “veloz dentro dessa noite oriunda quem, quem, quem me acende a boca do fogão que está entupida, quem que me frita um ovo do avesso, quem me paga comida, compra ração para o cão, entende que os livros estão espalhados pelo chão porque assim eles são…” A repetição do pronome “quem” enfatiza e reverbera o desejo do eu lírico [ou seria do narrador?], assinalando mais ainda o caráter poético do texto.  Assim se inicia o texto: “quem, quem, quem, quem, quem é que me cobre de beijos? Quem, quem me lambe a ponta do nariz…?” Essa repetição, que se pode dizer também icônica, já que indica um sentido de urgência, de obsessiva solicitação, aparece ora no início da estrofe [ou parágrafo?], ora no meio, mas sempre introduzindo um novo núcleo de ideias, de pedidos, de coisas desejadas, um novo rol de objetos, lugares, pessoas, profissões etc.

Cabe salientar aqui, e creio que sem perigo de dar spoiler, que estas são, também, as palavras que encerram o texto, expondo sua estrutura circular, ou inscrevendo-o no rol das obras que começam pelo final. O autor, num gesto tipicamente machadiano, marcado pela ironia, parece brincar com o leitor, querendo surpreendê-lo numa falta.  Senão, vejamos: “para os que começam lendo um livro pelo fim devo dizer que morri no meio da história; sou um defunto que jaz e pergunta: quem, quem…?” Há que se observar, também, que “veloz dentro dessa noite oriunda” é uma referência clara ao livro de poemas de Ferreira Gullar, Dentro da noite veloz, publicado pela Editora Civilização Brasileira, em 1975. Aliás, a referência a outras obras literárias, a personagens de ficção [“quem, quem, quem me dá essa vida de Macunaíma, brincando com o pau dentro do jirau…”], a nomes de autores ou figuras de destaque no mundo intelectual [“quem, quem, quem me dá a vida do cabeludo pajé Darcy, boca seca de tanto falar”] será, ao longo do texto, um procedimento bastante usado por Ricardo Soares, mas evitando, sempre, o tom de exaltação ou de discurso elevado.

Mas aí, na ficha catalográfica, diz que se trata de um romance. Entendemos que o romance é um gênero híbrido, que acomoda em sua estrutura outros gêneros, como bem nos mostrou Bakhtin, mas seria esse o caso deste livro do jornalista, diretor de TV e escritor Ricardo Soares? Se formos enumerar nele a presença de elementos próprios de um texto narrativo ou ficcional, talvez nos frustremos. O narrador, no caso, se confunde com o eu lírico da poesia. Há mais uma voz que explicita seus desejos, sua subjetividade, do que um ser fictício que conta uma história. É mais uma voz que clama, como numa oração, ou num cântico pagão, do que uma voz que narra. Não se trata nem mesmo de um poema narrativo, de caráter épico, já que não há a figura de um herói realizando grandes feitos, tampouco o tom elevado do discurso que caracteriza essa forma literária. [Da página 70 à 73 há de fato um poema, com versos, estrofes, rimas e composto num ritmo próprio da poesia feita pelos cordelistas; mas a inserção desse poema, claramente narrativo, no corpo do romance, – aqui admitindo-se que se trata de fato de um romance – encontra-se, ainda, dentro do caráter híbrido desse gênero narrativo.] Os personagens, ou pessoas referenciadas, melhor dizendo, não chegam a mover-se, dando início a uma ação concreta, progressiva. Vez ou outra surgem fragmentos de histórias que poderiam se desenvolver, mas logo se esgotam e somos introduzidos em outro núcleo de coisas evocadas pela voz masculina ou consciência desejosa de experimentar novas vivências. Os espaços são variados, já que há um vagar constante da alma ansiosa desse ser que se agita no texto. Desse modo, a narrativa em si, ou o escoar poético da voz que fala no texto, resulta num amplo passeio por vários lugares da nossa geografia, por vários aspectos da nossa cultura e da de outros povos, nessa tentativa angustiada de alcançar, realizar ou incorporar aquilo que se reitera com a pergunta: “quem, quem, quem, quem, quem é que me…?”

Para ampliar ainda mais o seu aspecto de obra fora do convencional, há a sua aproximação dos recursos da montagem cinematográfica. Cada bloco que se inicia, quase sempre com a pergunta obsessiva “quem, quem…”, parece expor um fotograma que registra uma unidade de desejo ou súplica que vai se desdobrando e agregando outros elementos ao núcleo temático, justapondo sensações ou ambientes, para ser, logo em seguida, substituída por outra, criando sempre uma atmosfera de vertigem. Mas, ainda que aparente ter uma estrutura fragmentária, há um sentido de encadeamento, de ligação, de amarra entre os parágrafos, ou as estrofes, ou as cenas, como queira. Como se dá isso? Às vezes a unidade seguinte ganha corpo a partir da retomada de uma palavra da unidade anterior, sugerindo a técnica de “palavra puxa palavra”. Um exemplo: “… este velho na ativa dava inveja a outros tropeiros…” Inicia-se, então, a unidade seguinte retomando a palavra “tropeiros” no singular: “quem, quem, quem me dá essa vida de tropeiro absoluto…” O vasto painel de realidades díspares que o autor vai agregando ao texto, ora com visão crítica sobre questões sociais e políticas, ora movido pela ironia e pelo espírito de carnavalização, cria a imagem de um mundo caótico, de cinema glauberiano, em que a câmera gira nervosa, registrando tanto o delírio poético do cineasta quanto o seu olhar que desvenda criticamente a nossa sociedade.

Em suma, o Cinevertigem de Ricardo Soares é esse passear delirante, aflitivo, obsessivo, desejoso por vários meandros do fazer humano, da experiência de vida do outro, enfim, da cultura, numa sequência que se processa entre o ritmo e a imagética da poesia e o possível novelo da narrativa ficcional que vai se desenrolando num único fôlego, até desembocar num final que é puro cinema, ou referência/reverência ao cinema.

 

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista. É autor de “Uma mulher à beira do caminho” [contos, Editora Patuá, 2017], “Trinta gatos e um cão envenenado” [peça de teatro, encenada em 2016 em Brasília] e “O colar de Coralina” [roteiro de um longa de ficção dirigido pelo cineasta Reginaldo Gontijo]. E-mail: gerallimma@gmail.com

 

 

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