Mohamed Mbougar Sarr: o gênio senegalês e o novo compasso literário
Por Viviane de Santana Paulo
Mohamed Mbougar Sarr é um escritor nascido no Senegal, ganhador do Prêmio Goucourt de 2021, o mais prestigiado prêmio literário francês, com a obra A mais secreta memória dos homens (se bem que, nos dias de hoje a palavra homem para definir toda a humanidade deveria ser substituída por humanidade, ou seja, A mais secreta memória da humanidade). O romance trata do racismo no meio literário e da paixão pela criação literária, além de aspectos sobre a imigração e o colonialismo africano, e é uma crítica ferrenha contra o meio literário francês. Mas sendo este meio nada diferente de outros, nos quais rege a classe dominante de homens brancos provenientes de países ricos, a crítica de Mbougar Sarr é válida para a maioria dos meios literários mais influentes do planeta Terra.
O enredo é complexo, narra a Odisseia do protagonista, estudante senegalês de filosofia em Paris, chamado Diégane Latyr Faye, e a sua obsessão em torno do romance fascinante intitulado O labirinto do inumano, publicado há setenta anos, que conta a história de um rei sanguinário que através do Mal absoluto pretende alcançar o poder. Com a ajuda da polêmica escritora senegalesa, sexagenária, Maréme Siga D, o protagonista inicia uma pesquisa sobre T. C. Elimane, o autor do livro, que foi acusado de plágio nos anos trinta, em Paris, e sua obra retirada de circulação. Por consequência, o escritor desaparece, transformando-se em numa lenda. Mbougar Sarr inspirou-se na verdadeira história do escritor maliano Yambo Ouologuem, que em 1968 publicou o romance Le Devoir de violence (O Mandamento da Violência), com o qual ganhou o Prix Renaudot.
As referências a Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño, são óbvias em vista das muitas reflexões. Aliás, o enrendo é repleto de diversas referências culturais. Como, por exemplo, T.C. Elimane procura o assassino de seu editor Charles Ellenstein, na América do Sul. Ellenstein morreu em um campo de concentração denunciado e torturado pelo literata nazista Joseph Engelmann. Neste trecho, Sarr menciona autores como Ernesto Sábato e o exilado Witold Gombrowicz. A busca pelo misterioso autor da fantástica obra dá-se em vilarejo senegalês, na Paris contemporânea e na Argentina pós-guerra.
No decorrer do enredo, Mbougar Sarr levanta questões controversas sobre o meio literário e seus vícios e limitações, como, por exemplo, na voz da personagem Siga D., ao indagar se alguma coisa mudou no meio literário: Fala-se sobre literatura, sobre valores estéticos, ou fala-se sobre a pessoa do escritor, sua cor da pele, sua voz, sua idade, seu cabelo, seu cachorro, sobre o pelo do cachorro, sobre a decoração do apartamento, da cor de suas meias? Fala-se sobre a escrita ou sobre a identidade, sobre o estilo ou sobre a imagem midiática do/a autor/a? Fala-se sobre criação ou sobre sensacionalismo e culto ao/a autor/a? Mbougar Sarr confronta-nos com a dúvida: deve a literatura estar imprescindivelmente encarcerada na nacionalidade, na cor da pele, na idade, no meio social, no gênero do/a autor/a? Ou devemos interpretar estas características como um aspecto adicional?
Segundo o crítico literário alemão Tilman Krause, no jornal Die Welt: “Sarr refere-se inteligentemente aos discursos mais atuais sobre identidades e políticas de identidade, por exemplo, transformando um romance fictício de 1938, escrito por um senegalês fictício, em um “campo de batalha ideológico” onde, ao invés de questões sobre qualidade, são negociadas ou discutidas questões sobre a identidade do autor. Sarr não está preocupado com qualidades particulares, mas com o que significa ser humano.”
Igualmente, o escritor argentino Juan Jose Saer trata sobre este tema em seu ensaio La selva espesa de lo real, no qual ele menciona: la narración no es un documento etnográfico ni un documento sociológico, ni tampoco el narrador es un término médio individual cuya finalidad sería la de representar a la totalidad de una nacionalidad. Saer repudia a tendência dos críticos europeus em interpretar as obras de autores latino-americanos exclusivamente através do olhar folclórico e colonialista e indiretamente esperar que autores latino-americanos escrevam estritamente sobre temas relacionados à cultura e política de seus países, ou seja, escritores de nacionalidades e procedência não europeia, não branca, estariam condenados a escrever somente sobre questões sociais, culturais e políticas de seus países de origem. Caso contrário, a autenticidade desta obra estaria prejudicada.
Em A mais secreta memória dos homens o personagem Stanislas, tradutor do polonês trabalhando na nova tradução de Gombrowicz Ferdydurke, está convencido que os autores devam ter permissão para escrever o que quiserem, independentemente de onde moram, de onde venham ou da cor de sua pele, e que a única coisa que você tem a exigir dos autores é talento.
Mbougar Sarr, como escritor negro, africano, imigrante, denuncia esteticamente esta falha no meio literário. O fato de a crítica trazer à tona termos generalizados como emigração e exílio sempre que se trata de autores não brancos e não nacionais é um de seus equívocos, como aponta o protagonista Diégane. Sarr antecipa e responde a muitas destas críticas no próprio romance. Além disso, parte da obra é sobre ativistas políticos e a manifestação pela democracia no Senegal.
A mais secreta memória dos homens possui gêneros e temáticas diferentes, e é uma reflexão poética e metafísica sobre a escrita e a literatura em geral – a literatura em geral.
Viviane de Santana Paulo (São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros, Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Seus poemas têm sido publicados em várias revistas e jornais na América Latina e Europa. Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e em 2016, do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de Arges, Romênia. Atualmente, vive em Berlim.