Do mimeógrafo ao Arnaldo
Por Gustavo Rios
Emoções em trânsito é o mais recente trabalho do escritor gaúcho Ricardo Mainieri, publicado pela Patuá. Ricardo, que além de poeta nascido nos “loucos e áridos anos sessenta”, é publicitário, aparenta prestar um genuíno tributo justamente aos tais-e-loucos anos sessenta, que cresceu muito bem nos setenta e desembocou com moral e pompa nos oitenta (ajudando a criar a geração oitentista, chamada “Geração Mimeógrafo”). Ao buscar referências desses períodos para o seu trabalho, do ritmo rápido e dos trechos curtos, tipo um Leminsky ou um Torquato, às temáticas, Mainieiri consegue nos trazer um bom livro.
Dividido em partes, situação que agradará o leitor, no sentido de que serve como guia para o conjunto de textos que seguem (dentro da proposta), Emoções em Trânsito se apresenta de forma coerente. A concepção de se fazer uma poesia leve, simples, direta e sem barroquismos ou classicismos, mas com alguma profundidade, deu o tom da obra.
Podemos começar pela primeira parte: “Poiesis”.
Já no primeiro poema, percebemos a forma e a intenção do autor para seguir em frente. O texto, chamado “Minor poet” pode ser definido como uma boa apresentação: “sou poeta / de palavras escassas / imagens esparsas / meios-tons / não me imponham / a audácia da lâmina / nem o incêndio dos versos / prefiro o reverso / lado alvo da lua / melodia de sílabas / com cadência e refrão / sou poeta menor / confesso / mínimo e lírico animal / a ode e o épico / ficam bem para Homero / sou mero homem comum.”
Podemos ver de cara que a escrita do Mainieri possui, sim, qualidades. Na aparente busca por um tom, tendendo mesmo para a musicalidade (como um bom letrista de rock and roll, por exemplo), a gente consegue também fisgar, aqui e acolá, preciosidades que acabam por validar o conjunto.
Vejamos a seguinte frase: “não me imponham / a audácia da lâmina / nem o incêndio dos versos”. Agora, vamos prestar atenção à carga poética contida aqui.
Como uma boa escrita sempre sugere, ao se esquivar do que ele chama “audácia da lâmina” ou de um “incêndio dos versos”, podemos nos perguntar (foi o que ocorreu comigo) o que o poeta deseja: fugir de um lirismo tacanho e/ou escrever sem amarras, evitando o corte (lâmina)? A recusa de “ser” um Homero para ser “mero homem comum” talvez nos dê algumas pistas.
Desse modo, posso dizer que todos os seus poemas seguem essa estrutura, digamos. Mesmo as que pertencem aos outros blocos temáticos (“Menoridade”, “Viagens atemporais”, “Biodiversidade”, “Eros tropical”, “Inventário das horas”, “Urbanagonia” e “Paisagem dilacerada”), carregam essa mesma musicalidade.
Entretanto, ainda que enxergue um fio condutor ao longo das páginas, não seria correto afirmar que ele se repete infinitamente. Conforme já dito acima, a divisão por temas foi de grande ajuda na leitura que fiz. Para cada parte, o escritor buscou uma forma.
Em “Menoridade”, por exemplo, o segundo bloco, Ricardo nos confronta com perguntas mais profundas e pessoais. A diferença é que os questionamentos parecem surgir do ponto de vista de uma criança. Como alguém (uma criança, no sentido metafórico da coisa, por supuesto) que se pergunta (e pergunta ao próximo) sobre o sentido da vida.
Vejamos o exemplo a seguir: “tarde / de domingo / depois do almoço / do futebol / e do programa televisivo / o menino / se pergunta / sobre a vida / é só isso?”.
Notem que a linguagem se converte em fala. Fala de uma criança, de alguém que perscruta o mundo ao redor com passos iniciais. Ideia que pode muito bem se justificar pelo título: “Precoce Filosofia”. Essa mesma voz, suposta e docemente infantil, representa a busca por respostas. Ou talvez a busca por mundo menos ordinário (o mundo que “podia ser / – quem sabe – / um recanto ideal”).
Em “Viagens atemporais” é o tempo que lhe dá guarida e mote (elementar, meu caro Watson!). E aqui mais uma vez o poeta consegue um resultado interessante, com destaques (trechos) louváveis em alguns poemas: “relâmpago que corta / a moldura da face / num sorriso”; “alguns projetos / viraram frutos / outros inútil / semeadura”.
A noção de que quanto mais lemos, mais profundo o texto fica pode ser defendida com alguma moral. Porém, a profundidade no caso não seria necessariamente uma viagem “para dentro”, aquela introspecção chatinha e ininteligível. Mainieri amplia o escopo de seus temas. Como no bloco seguinte, chamado “Biodiversidade”, um das mais interessantes se não pelo tema (necessário, mas amplamente conhecido), pela forma (Ricardo aqui arrisca “tipo uns haicai”; e podemos dizer que ele acerta): “noite compacta: / é de néon cintilante / o trajeto que a lesma traça” (“Natureza”); “flores lilases / no espelho do dia / apaziguam o olhar” (“Ipês”); “em teu verdeazul / ancoro meus olhos / ainda preservados” (“Mata Atlântica”).
“Eros Tropical”, de cunho fundamentalmente sensual (alguma dúvida, meu caro Watson?), talvez seja o bloco que menos instiga o leitor, apesar da tentativa louvável do autor em trazer à tona imagens com tal pegada. Nos textos que compõem essa parte, o que percebi foi uma certa repetição de clichês. Algo que poderia ter sido subvertido (a-subversão-da-subversão, se considerarmos o tema “sexo” como um tabu) na tentativa de se descolar da comum abordagem.
Em “Inventário das horas”, o seguinte, com certeza o que mais exigiria de qualquer artista pela importância do assunto, encontramos um escritor bem tranquilo e seguro de seu labor. E aqui, mais uma vez, fisgamos trechos que merecem destaque pela carga poética contida: vide “Tempo Atroz”, “A Face do Espanto”.
“Urbanagonia” e “Paisagem Dilacerada”, ambos com alguma semelhança entre si, só ratificam o talento do Ricardo Mainieiri. Sob um olhar francamente crítico diante das mazelas do mundo (incluindo o caso da Boate Kiss), o escritor mantém o prumo. Abordando desde o consumo que norteia boa parte de nossas relações à política (“Mais-valia”). Desse modo, Mainieiri nos coloca frente a frente com questões urgentes.
Portanto, ainda que a gente possa enxergar o uso recorrente da forma e da estrutura (mas não ad infinitum, bom frisar), como se os poemas servissem apenas de justificativa para um suposto gran finale (a frase de impacto; a derradeira), creio que o Emoções em Trânsito irá agradar bastante aos que, assim como eu, gostam de poesia. Ainda mais sendo daquela de certa forma vinculada à moçada da chamada “Geração Mimeógrafo”. Ou mesmo semelhante ao experimentalismo bacana e benquisto de um Arnaldo Antunes.
De minha parte, posso dizer que gostei do cara. E que venham mais coisas desse interessante poeta porto-alegrense.
Gustavo Rios é baiano e autor do livro Rapsódia Bruta (Mariposa Cartonera, 2016), dentre outros.
Grato Gustavo pela resenha bem estruturada e que aborda eixos fundamentais de minha poesia. E ao Fabrício pela oportunidade de estar entre tão interessantes artistas. Evoé!