Trote no pelo
Por Daniel Russell Ribas
A obra “diário: a mulher e o cavalo”, da autora Julia Raiz, é um ser de dois corpos que se fundem em plena corrida. Na dualidade entre interno e externo, tanto na forma quanto na narrativa, forja-se o elemento que conduz à unidade no grau confessional e literário. Trata-se da mudança de totem para o arquétipo, o sagrado que se torna um princípio platônico. A superfície vislumbra ideias complexas em uma linguagem direta e cuja abordagem determina uma eventual reformulação da mesma. Em um exame minucioso, encontra-se uma investigação através do tempo: a cronologia pelos movimentos executados a cada trecho, em que musicalidade é uma coautora, no lugar de uma medição acumulativa. Sem exibicionismos, experimenta como as sensações, por mais comuns em descrição, são únicas quando aplicadas à individualidade. Assim, como a pessoa que lerá decodificará estas percepções não é o importante. Tudo está no texto, através de ritmo e símbolos.
O fio-condutor está presente no título: em um diário, a mulher investiga a si e o que a cerca, a partir de um veículo, o cavalo, um guia hostil para reflexões. O fascínio se desenha na gradação em que estes objetos de estudo se organizam a uma condição de autodescoberta. A visão de fora da narradora para os dois seres, civilizada e selvagem, cujo enlace em uma criatura própria é tão imprevisível (à primeira vista) quanto inevitável (ao fim). A mulher e o cavalo se unem no enfrentamento ao cotidiano que busca domesticá-las. Pode-se citar dois trechos do capítulo 5 de “Mulheres que correm com lobos”, de Clarissa Pinkola Estés: “… se quisermos ser alimentados por toda a vida, precisaremos encarar e desenvolver um tipo de relacionamento com a natureza da vida-morte-vida” e “O que se teme pode fortalecer. Pode curar”. Essa está presente na epígrafe que sintetiza miopatia como o efeito colateral de uma força que não pode ser contida, pois seria mortal. Ela retoma esta ideia de forma mais explícita no trecho: “Depois, se este fosse um grande romance, o escritor escreveria que os cavalos se reúnem à noite, de costas para a fogueira e cantavam baixinho pedindo paz aos espíritos enganados”. Aquelas que matam, como a mulher do pm, ou mulheres que se matam, como Sylvia Plath, olham para seus pares em sua jornada por uma individualidade em que matadores montam cavalos.
Remete-se a Jung, quando se refere ao cavalo como símbolo do irracional mágico, cujos impulsos ocultam sua incapacidade de consciência: “Assim sendo, o “cavalo” é um equivalente de “mãe”, com uma tênue diferença na nuança do significado, sendo o de uma, vida originária e o de outra, a vida puramente animal e corporal. Esta expressão, aplicada ao contexto do sonho, leva à seguinte interpretação: A vida animal se destrói a si mesma”. Julia Raiz propõe uma releitura, em que a vida animal se reconstrói a partir do conhecimento de sua condição de oprimida e opressora para então construir uma nova e única consciência. Em outro trecho do livro: “A menina que encontrei na lanchonete falou que as mulheres têm que fazer que nem os cavalos na umbanda: transmitir. Eu não entendi. Mas eu sei que as mulheres estão interligadas, nossas mentes formando uma grande rede”. Esta grande rede só pode ser acessada através de uma leitura particular.
A técnica é honesta, com pontuais intervenções em seu formato, como na entrada em que a autora interpõe a narração com observações de cena. Desta forma, reitera sem se repetir a mensagem que permeia cada capítulo: a narradora e sua expressão não são distanciadas. A honestidade reside que cada fator do texto é utilizado para aprofundamento psicológico. Por mais disperso que soe em momentos, ao mencionar personagens e situações que aparentemente não pertencem, trata-se de como o jogo entre autora e quem lê é estabelecido. O fluxo é o bilhete de embarque para o universo mental da personagem. A cada associação a narradora dialoga consiga mesma e quem lê. Essa pessoa, no entanto, não tem participação passiva, pois as indagações do texto buscam estabelecer outra terceira e indireta identificação ou constatação. A brincadeira metalinguística, literária e confessional se faz aí. Como escrito acima, não é interessante uma leitura engessada, mas a transmissão de sinais suficientes para que a pessoa que lê preencha as lacunas propositais.
É um grande romance pessoal dentro de uma pequena novela de dispersos que confluem em linguagem e em tema. Um fluxo com trote incerto, mas cujo caminho está traçado. Como Julia Raiz traduz na entrada do belo “selo”: “Existe sempre uma coisa mais verdadeira acontecendo fora do nosso alcance de visão, no momento que uma estrela se apaga é porque ela já não existia e não existia o fim de uma luz, existe apenas a transformação que escapa à nossa percepção, existe o presente que nunca fomos capazes de captar”.
Daniel Russell Ribas é membro do coletivo literário Clube da Leitura, no Rio de Janeiro. Escreve crônicas quinzenais no site RUBEM. Organizou e participou de diversas coletâneas de contos. Ganhou o Prêmio Argos pela edição de “Monstros Gigantes – Kaiju”, em parceria com Luiz Felipe Vasquez.