Doses exageradas de estranheza
Por Sérgio Tavares
Um exercício de porra-louquice é o que rege o processo de construção de “Eu, Cowboy”, de Caco Ishak. Em seu livro de estreia, o escritor goiano empenha-se na radicalização da forma e do estilo, concebendo uma colagem frenética, um “brainstorming”, uma metralha narrativa que esfacela qualquer conceito instituído de gênero, ação temporal e estrutura temática.
De fato, uma classificação mais adequada ao resultado final seria “um romance de subversão desconstrutiva”. Para se ter uma ideia, somente na página vinte e cinco é que se começa a prestar esclarecimento de quem protagoniza a trama.
Este é Carlo Kaddish (ou assim parece ser). Um sujeito inescrupuloso, hedonista à terceira potência, com queda por (pré-)adolescentes, cujos dias se tencionam numa roleta-russa existencial. Ao seu redor, orbitam amigos também adeptos ao comportamento desbragado e, da mesma maneira, medíocres perante suas responsabilidades. São todos losers, conformados de que “cresceram ficando para trás”. “Continuo andando com os mesmos frustrados de sempre e só porque eu me sinto bem ao lados deles”, confessa Carlo, assumindo o fracasso na condição de um mal congênito.
A culpa estaria na “geração que perdeu o medo de envelhecer” e, assim, ficou suscetível a uma crise extemporânea de meia-idade. “(…) a graça disso tudo é que, mesmo podendo viver até os trezentos, a sensação geral é de que, passou dos trinta, já era”. Portanto, o que resta é se lançar numa incursão de excessos, sem compromissos, incitando “o prazer pelo prazer de carregar um vazio nas costas, já fora do peito, trancafiando nada”.
Os únicos poréns, no caso de Carlo, seriam o afeto pela filha mantida à distancia pela mãe e o gosto pelas artes plásticas. Ou talvez não, quem sabe? Por certo, mesmo a descrição acima tem grande chance de estar equivocada. Isso porque foi montada através de cacos de informações desbaratados por todo o livro. Alguns, inclusive, contraditórios, devido ao jogo verborrágico de encavalar trechos de momentos distintos, sem conexão entre si.
Ishak empreende esse efeito aleatório no desenvolvimento (ou esboroamento) da narrativa, coadunando maciços de texto, diálogos longos e curtos, e-mails, palavras em caixa alta, verbetes de dicionário e trechos de música em inglês. A voz, em primeira pessoa, por vezes rompe os limites internos e se dirige diretamente ao leitor, mostra consciência de que está numa obra de ficção. Passado e presente se intercalam de maneira incessante (quando não se sobrepõem), em saltos temporais que se localizam nos anos 90 e no começo dos anos 2000.
O entender corrosivo destas duas décadas, aliás, é o ponto alto do livro. Embora não deixe de desfilar, por meio de seu protagonista, reflexões carregadas de uma filosofia torta, o autor constrói sua ambientação por meio de referências que vão da cultura pop a fatos históricos. Informações sutis, sugestões, o que hoje é conhecido, na cartilha cinematográfica, como easter egg. De nomes de bandas a títulos de canções que evocam bandas, da MTV ao 11 de setembro, do grunge à uma ressaca permanente, um ressaibo de que tudo se podia, ainda que não se quisesse nada, há iscas para interpretações por todo o romance. É um recurso estimulante, mas que, por conta de outra decisão, vem a se tornar um problema.
Ishak ergue sua história com a pulsão de detalhes, contudo aferrada a um ritmo vertiginoso, uma prosa resfolegante que impede que a leitura se detenha a esses pormenores, tenha tempo para decifrá-los. Tudo vem num jorro, como que arrevessado, sem preocupação em estabelecer um fio condutor, tampouco uma lógica. Isso acaba forçando várias pausas que, por fim, só incrementam a sensação de desbarate.
Outro aspecto contraproducente é a opção pela autossabotagem, a autodepreciação das próprias escolhas, não deixando muito claro se a intenção é sobrepesar a acidez, constituir uma paródia ou destilar doses cavalares de crítica. O autor planta aqui e acolá palavras como “cópia”, “plágio”, brinca com os clichês narrativos, reconhece que escrever é “chupar” o que já foi feito, que escritor é “copiar e colar diferente”.
Em dado momento, quando Carlo sugere largar tudo e cair na estrada a la Kerouac e seu clássico “On the road”, ele mesmo aponta que é uma ideia nada original, ainda que seja, na verdade, uma pose de “tô cagando pro Kerouac”. Essas sacadas, ainda que divertidas, dependem de uma bagagem extraterritorial ao livro, que não está em todo leitor, e acabam soando como um tipo de piada interna, a piada que anula a própria piada.
Enfim, “Eu, Cowboy” é uma experiência mobilizada por sensações, vozerio e muita fúria que se assemelha a uma locomotiva em pleno movimento que, tal uma locomotiva em pleno movimento, não é fácil de embarcar.
Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês e o espanhol. Participa da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.