Uma pequena-grande amostra da condição humana: o originalíssimo impacto do conto “A História, um pouco de blush nas bochechas e um número tatuado no braço”, de Mário Baggio
Por W. J. Solha
O ancião que acaba de receber o Nobel de Literatura vai dar entrevista na TV, pelo que, antes, é encaminhado à maquiadora do canal. “Ela o cumprimenta, olha-o de maneira profissional e avisa que lhe aplicará um pouquinho de base no rosto e tirará o brilho da cabeça pelada e das mãos, ´porque em televisão uma pele oleosa fica horrível e desvia a atenção do que realmente importa´”.
Ponto pra ela: lembro-me – e o velho escritor também deve se lembrar – de que Nixon começou a perder a eleição pra Kennedy , em 60, pela pele oleosa, o descuido da aparência num debate em que teve de enfrentar o outro . Os que acompanharam a coisa pelo rádio acharam que ele fora o melhor. O outro foi eleito pelos que viram o confronto pela TV.
Bem.
Colocados Nobel e maquiadora em cena, Mário Baggio dá um show no diálogo.
– Sobre que assunto o senhor vai falar no programa?
– Perdão?
Você, como eu, vê surpresa e ironia na resposta à pergunta infame. Mas é apenas um problema de audição do gênio. Ela capricha na dicção:
– Qual será o tema da entrevista?
– Ah, isso. Será sobre um livro que escrevi, eu acho – e sorri, embaraçado.
– O senhor vai vender bastante, esse programa tem muita audiência.
Quando ela quer saber quantas obras ele já publicara, ele, pra simplificar a coisa, diz “muitos”.
– Mais de quatro? Mas então o senhor é profissional. Como se chama?
– Alberto – gagueja – Gerber;
– Gerber, Gerber. Acho que já ouvi falar.
O conto já nasce curta-metragem. Um bom ator maduro e uma grande atriz ainda jovem matariam o público de rir, a princípio, de emoção, em seguida. Principalmente porque tudo é extremamente real, convincente. José Saramago soube que ganhara o Nobel por uma TV de aeroporto. Olhou em volta: ninguém – fora ele – prestara atenção na notícia.
– Agora um pouco de blush – diz a maquiadora -. Pra mim, o blush é a maior invenção da humanidade.
Ela é uma figura antológica.
Mas vamos ao final, que só conto por que é um dos 63 do volume e já está no título. Como já vira até degola de crianças, nos outros, eu esperava, qualquer um esperaria algo na mesma linha – mas Mário Baggio mereceria estar no lugar do Alberto Gerber, por ele.
– Agora vou maquiar um pouquinho as mãos. Pode arregaçar as mangas? Assim não mancho os punhos de sua camisa.
– Ah, sim, claro – o escritor levanta as mangas até os cotovelos. Tem as mãos trêmulas. Bia percebe e o ajuda. Interrompe o gesto, admirada.
– Ah, olha só. O senhor tem uma tatuagem, que moderno! O que é? Simboliza alguma coisa?
– É só um número… – o escritor responde, com um fio de voz.
Baggio resume toda a tensão do Nobel com aquele “tem as mãos trêmulas” ao arregaçar as mangas e, agora, ante a total desinformação da moça a respeito de uma enorme tragédia humana, ainda com sobreviventes: “É só um número… – responde, com um fio de voz.”
Depois do punhal enfiado, o contista revira-o no peito do leitor e do personagem:
– Um número. Que original! Eu também tenho uma tatuagem, pequenininha, no ombro – afasta a alça do sutiã e mostra a ele.
Batido o prego, o reviramento da ponta:
– Se eu fosse o senhor, faria uma igual, no braço esquerdo, pra ficar simétrico.
W. J. Solha nasceu em 1941. Escreveu romances e poemas longos premiados nacionalmente, trabalhou em filmes como O som ao Redor, pintou cento e tantos quadros, montou peças de sua autoria, foi parceiro de grandes compositores, continua na ativa.