EU ME APRESENTO
Por Jorge Elias Neto
Há que se entender ou não o ornitorrinco do pau oco?
Eu, por exemplo, vivo em busca de algum autoentendimento. Só recentemente, relendo uma definição do Breviário da decomposição, de Emil Cioran, é que me descobri um pessimista entusiasmado.
Mas, antes de uma definição psicológica, quem ler esta coletânea de meus três primeiros livros já publicados, em que incluí poemas inéditos, terá primeiro uma impressão de estranhamento e de curiosidade: o porquê de meu nome.
Entendo.
Embora ainda prefira que o leitor procure ler o poema que leva meu nome – sempre considerei a obra mais relevante do que o autor –, sinto-me impelido a prosear um pouco, talvez deixar algum rastro sobre quem somos nós, os ornitorrincos do pau oco.
É chegado o tempo em que o silêncio e a contemplação passaram a fazer parte do comportamento de um transgressor. É o que conclama a balbúrdia multimidiática de nossos dias.
Na verdade, nada mais efêmero que o conceito numérico dos dias: um ou dois dígitos não preenchem o vazio do homem pós-moderno.
E os “vencedores” propõem: Falemos do caos binário, já que se tornou “feio” falar do Sol e da Lua.
O choque. O homem e o tempo, com seus instantes vendidos em módulos. Uma overdose de estímulos de duração efêmera. Eis a droga que carece ser discutida, esta que alimenta o corpo fluido e seus receptores cerebrais carentes de imagens.
E é aí que me insiro e busco me justificar.
Quem sou? Algo indecifrável, como meu coirmão, objeto de estranhamento? Mamífero, ave? Ovíparo, vivíparo? Tudo! Menos útil e justificável, embora ele ainda desperte alguma curiosidade científica. O que não parece ser bem o meu caso…
O ornitorrinco do pau oco destoa, e pode, muito em breve, perder de vez muito do lastro dos tempos, desgarrar-se do verde, de sua essência “Terra”. Impregnar-se definitivamente do urbano, perder-se no cinza e embriagar-se com seu-eu-deus-pessoal-bonito no selfie (sou eu lindo na foto, i.e.).
Dito algo sobre o ornitorrinco, há de se falar do “pau oco”.
Essa expressão “roubei” das esculturas que me encantaram na infância, em minhas visitas aos museus de Ouro Preto e Mariana.
Todos sabemos das histórias de ouro e diamantes dentro de esculturas de santos entalhados em madeira em contrabando que ocorria nas Minas Gerais, nos idos dos séculos XVI-XVIII. Nas costas da imagem (ou em seus pés), de forma camuflada, uma pequena abertura permitia a ocultação do metal nobre e das pedras preciosas que movimentavam o Velho Mundo.
É aí que eu me insiro.
Vivemos um momento neoantropofágico na poesia. Pelo menos vejo isso como uma das tendências em muitos dos poetas atuais. Na miríade de cores, na heterogeneidade da produção atual, vê-se um esfacelamento do corpo, do que resta do corpo, já que a alma já foi esmigalhada.
O final do século XIX trouxe a proposição da morte de Deus, trouxe o materialismo dialético. O homem oitocentista adentrou-se no novo século deslumbrado com a tecnologia e o conhecimento evolucionista. Tivemos o leninismo-stalinismo e vimos que o homem, vestido com a ideologia, transformou a proposta da utopia nas distopias descritas por Orwell e Huxley. Viveu a insanidade nazista e, com o distanciamento histórico, pôde entender que o homem errado no lugar certo pode gerar a insanidade coletiva. Tudo trouxe a descrença, a desilusão e abriu espaço para o deus mercado, o oportunista da vez.
E onde entra o ornitorrinco e o “pau oco” nisso tudo?
Na medida em que o poeta é a “antena da sociedade” ― dito gasto, mas definitivo, de Ezra Pound ―, o poeta-ornitorrinco carrega consigo todo o estranhamento do que o circunda e, impregnado do que “não tem serventia”, por não optar pelo instante em detrimento do efêmero, corre o risco de se tornar uma curiosidade em risco de extinção.
Como pude, busquei me desconstruir, entender minha irrelevância relativa nesta vida. Enfim, vi-me um ornitorrinco.
E o que tem de especial o ornitorrinco? O olhar. E a necessidade… A necessidade de abrir o peito, com força, como tão bem ilustrou o poeta e grande artista Felipe Stefani, na ilustração que acompanha este livro.
Abrir o peito e oferecer o que mais precioso ele traz guardado em seu arcabouço de ossos e carne.
Já que o poeta é um estorvo, ele abre seu peito e joga na cara de quem quer que seja, como seu último ato de vida, rasgando sua última pele – a palavra —, mesmo que inutilmente, a “linguagem-ouro de enganar trouxa” que o alimentou enquanto vivo.
Eis aí o ornitorrinco do pau oco, queiram ou não.
O ORNITORRINCO DO PAU OCO
j´étais le bruit d´absence
Fui pelo não ido das manhãs
em voo de cera e contemplação
perseguindo desvãos no Mundo
fui ao sumidouro dos pés
descendo pirambeiras
em abissais loucuras
fui o anônimo
inacabado de véspera
fui inumano
fui testemunha
de corpo ausente
das praticâncias e despudores
fui matraca indignada
fui mendicante
fui a farpa
arrancada da espada
fui consolo adocicado
para línguas ásperas
fui perene e dilatado
fui objeto
fui pão e circo
do apocalipse
fui pudico e privado
fui rasgado
e brocha
fui tardio
sem salva-vidas
fui obsceno
cosseno e outras peripécias
fui o de dentro
sorriso do redemoinho
fui o gênesis
da comédia humana
fui o esteta do insolvível
fui o engate
o torvelinho
Fui o poeta.
***
NÃO ME CALO
Mordaça
se rasga com os dentes,
e, se me cortam a língua,
reinvento
a linguagem-uivo
̶ corda vocal é elástico
de boleadeira ̶
que atira longe o eco
do desatino.
***
ANACRÔNICO
Meu é este desperdício,
olhar que não se enquadra,
silêncio que espia na luz apagada,
o medo de não estar vazio
quando se acercar a luz do nada.
Meu é este dizer do tempo,
discurso interrompido,
lampejo, lamento,
saber inútil
o saco e a porra.
Meu não é o início,
mas o gargalo,
o rente, o arrebol sorvido,
este escuro – noite que se ressente do frio,
a fresta que observa,
o liberto, o estio,
ornamento dos dentes,
pavor, pavio.
Meu é o fim
justificando a queda,
o dedo ‒ semente das unhas,
o arvoredo brotando no interminável.
Meu é o absurdo,
o privilégio das horas,
o beijo contado,
o assobio, o assombro,
o firmamento inútil.
Meu é o desafio,
o preto e o branco
e este zelo
pelas coisas perdidas.
***
A BOCA DO INEFÁVEL
Cobre-te melhor
……….a seda rasgada,
contornando teu corpo,
nas fendas do meu desejo.
E esse cheiro das madrugadas
em que me masturbo
de tanta insônia.
Os momentos perdidos,
em um sonho mau,
tornam justo esse pesar
………..por amanhecer,
………..e ter que partir
nessa rotina que me afasta de ti,
obscena mulher de língua áspera,
………imensa,
………………..onde derramo
minhas noites de macho,
………………..perdido.
***
SAUDÁVEL
Humores, farrapos,
cachaça.
Rumores, gargalos,
cabaços.
Batuques, bagulhos,
………….. ..Carcaça.
E eu debruçado
………………no ocaso.
***
BACURAU
Quando acordei
o pássaro noturno
permanecia sob a vidraça.
O orvalho,
as penas mortas,
o desatino da solidão.
Fazia frio,
e meu pensamento
caminhava perdido.
Testemunhar o que é casa,
o que é morte.
Não basta a fúria
enterrar-se até à noite.
Saber rasgar as roupas,
fazer curativos
não devolve o ar roubado.
A verdade é o pássaro
e o descuido das formigas.
***
SUPERORNITORRINCO
Acabou o sal
― desperdiçado ―
entre os sós,
e cada entranha
buscava o sustento
e a solidão
nos escombros
― como um consolo
na estranheza.
eu, ornitorrinco,
ridículo e ébrio,
reduzido
e semelhante ao consolo
dos demais ébrios,
ressentia-me
da esperança
e claudicava de medo.
não tinha lar,
não tinha sossego,
expirava,
e o que me sustinha:
― o desterro.
uma marca guardada,
uma flor
e o desejo.
chegara o dia
em que o temor me abraçara
com as trevas
e o pavor
da extinção.
troquei olhares,
então,
com os perdidos no calabouço
e percebi o sol
que irrigava a terra
e o verde
que me brotava
entre os dedos.
Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, médico “eletricista do coração” e poeta. Livros: Verdes versos (Vitória: Flor&Cultura, 2007), Rascunhos do absurdo (Vitória: Flor&Cultura, 2010), Os ossos da baleia (Vitória: Secult–ES, 2013), Glacial (São Paulo: Patuá, 2014), Breve dicionário (poético) do boxe (São Paulo: Patuá, 2015), Cabotagem (Ilhéus: Mondrongo, 2016) e Breviário dos olhos (Vitória: Edição do autor, 2017).