Aperitivo da Palavra I

O olhar atento do escritor 

Por Gustavo Rios

 

 

Acredito na ideia do escritor que trabalha com o que observa. E pouco me importa se esse argumento já foi repetido aos milhões ou bilhões, das mais variadas formas. Para mim, tal atributo costuma render bons livros, independente de ser um lance nato ou inato – sendo o “não nascido” aquele que aprende no caminho, sob o desejo de lastrear a imaginação e enriquecer a própria narrativa.

O conceito acima é simples, mas não simplório: o escritor deve olhar tudo atentamente. E deve gostar do jogo. Sem titubear, o “escriba” tem de ser aquele tipo de artista que passeia, capta, dando um novo significado ao seu entorno. Talvez algo bem próximo do que Walter Benjamim descreveu em seu livro, A modernidade e os modernos, ao citar G. K. Chesterton que, por sua vez, falava sobre Dickens: “(…) Dickens não absorvia no seu espírito a cópia das coisas; antes era ele que imprimia seu espírito nas coisas”.

Ney Anderson, escritor e crítico literário pernambucano, é um cara jovem e tarimbado que gosta realmente de livros. Em seu site Angústia Criadora, desde 2011 ele vem nos mostrando isso através de resenhas lúcidas e cuidadosas e de entrevistas. Como se não bastasse, Ney parece não ter grilos com essa coisa de participar de oficinas literárias, apesar dos riscos (uma oficina deve ampliar as escolhas do aluno, não formatá-lo; mas esse papo fica pra depois). O que me leva a crer que ele é do time dos que trabalham e retrabalham a escrita. Encarando sua arte com esmero.

O Espetáculo da Ausência, lançado pela editora Patuá em meados de março, é um livro de contos com uma belíssima capa (precisamos falar sobre essas pequenas obras de arte, o excelente trabalho do artista gráfico Leonardo Mathias). Surpreendido em meio ao estrago que a pandemia nos causou e ainda vem causando, O Espetáculo da Ausência bem que anda merecendo um maior destaque fora do metiê, lugar onde teve boa repercussão entre os pares. O Ney tarimbado que apontei acima foi referendado por gente de renome. E ele bem que merece, diante do seu já extenso currículo que inclui resenhas para a imprensa, participações em diversas coletâneas e o seu trabalho como colunista de literatura na rádio CBN de Recife.

Pegando carona na apresentação de Raimundo Carrero, e roubando um de seus adjetivos, posso afirmar também que Anderson é um cara sofisticado – e parece que isso vai além do trabalho literário. Em seu livro, cada detalhe, fala e cada gesto nunca surge à toa. Fruto do bom observador que ele é, suas descrições são exatas, finíssimas (falo do cuidado e do critério, tipo lâmina e corte, não de pedantismo), sejam elas um cigarro aceso ou uma taça de vinho e alguns comprimidos. Ou até mesmo uma viagem de metrô onde um micro universo de vozes se impõe, num dos melhores momentos do livro (vejam o conto “Estação final”).

Com Ney não tem essa de acaso, considerando aqui “acaso” como aquela frase solta, desvinculada, perdida e inútil.

A forma com que as histórias são contadas demonstra em si um profundo respeito pelo humano, sujeito-objeto de sua labuta. E pelo o que esse mesmo sujeito esconde dentro de sua cabeça e de sua alma. O olhar atento do jornalista, aquela coisa do repórter que investiga, parece se misturar ao do escritor, vai o mais fundo possível, enxergando o monstro que habita dentro de nós, parafraseando numa boa outra das ideias do Carrero.

Já de cara a gente percebe o talento. Em “Máscara rasgada”, por exemplo, o primeiro conto, somos convidados a acompanhar bem de perto os passos e as escolhas do personagem, seguindo com ele como voyeurs de ocasião. Os passos que vagueiam por esquinas onde se “guardam segredos que poucos conheciam” são visíveis, palpáveis, mas sugerem e escondem muito. E o protagonista sem nome (recurso que potencializa o mistério) quando age, obediente ao próprio desejo, nos leva junto com ele, num momento que pode parecer ruptura, mas que, ao final, se mostra talvez corriqueiro – a imagem da máscara rasgada no chão de um apartamento dá o tom perfeito à ideia de nos mostrar que, ao menos em algumas noites, nenhuma máscara cabe, esconde ou serve.

Não demora nada para termos outras boas evidências. Na sequência, “Nana neném” nos arrebata diante de um sofrimento inesperado, e de suas consequências, enquanto que em “Neon horizontal” a mudança ágil de vozes e perspectivas, aliada aos cortes temporais feitos com precisão digna de uma navalha das antigas, nos prendem e nos empolgam sob o efeito de frases tais como “Quer algo mais estúpido e sem graça do que o nome morte? Mas para que adiantaria um nome bonito para a morte?”.

Não achem, contudo, que a obra pede convencimento através do uso batido de frases meio, digamos, filosóficas. Ainda que Ney, com sua tarimba, provavelmente conseguisse trabalhar nessa base, sem escorregar praquela coisa chata do “papo cabeça” que desvirtua a voz do personagem, as escolhas que ele fez para conduzir o livro se apóiam na simplicidade (o “papo cabeça” quando surge faz parte do conjunto e das intenções; a voz correta no momento idem). No encaixe exato, porém amplo. No gesto banal descrito abertamente, aquele movimento antes da ruptura ou mesmo da descoberta. Gesto que carrega um mundo de possibilidades, sugerindo algo, tudo contribuindo para que o conto funcione e nos agrade.

 

O diapasão Carver      

 

Outro ponto a ser destacado é a minuciosa forma de narrar esses pequenos momentos e fatos, recurso que sustenta o livro na maioria das páginas. Nessa riqueza de detalhes e na descrição das ações, pude identificar afinidades benquistas com o Raymond Carver, um dos maiores contistas que o mundo conheceu (em minha humilde e reverente opinião). Assim como o Carver, Anderson estica até o limite do possível suas histórias, gerando a tensão necessária para que não o abandonemos em qualquer rua à beira do Capibaribe.

Como bons exemplos, posso listar os contos “Tela em branco”, uma aventura meio pictórica, “A história nunca termina”, “Janela secreta”, “Já não sou o único que encontrou a paz” ou o já citado “Máscara rasgada”. A técnica que Ney usou para construir tais narrativas se parece com a do ficcionista Carver em seus melhores momentos. Contudo, ao afinar a escrita dessa forma, Ney conseguiu trazer para o contexto escolhido por ele (seus personagens, a comovente lembrança de seu pai e o lado mais sombrio e volátil da metrópole Recife) a influência do Raymond, sem, contudo, ser um imitador vulgar do estadudinense: em O Espetáculo da Ausência a influência do Raymond serve como um diapasão, não impedindo que Anderson siga firme na busca de sua própria melodia.

E não é só isso, obviamente. Em outros textos, podemos ver o autor que arrisca na forma e que usa da ironia para criar seu universo (“Contrato exclusivo” e “Todos os corpos”). Vemos também um escritor que constroi a profundidade em suas histórias, sem ser um janota, sendo “A casa vazia” um bom exemplo: a fundura nesse caso aparece de forma natural, como consequência e desdobramento do propósito do escritor, dos caminhos trilhados por ele.

Outro elemento que merece destaque, talvez pela surpresa que me causou, é o jeitão particular e eficiente de utilizar, sem vacilos, um pouco dos macetes comuns às narrativas de suspense e, por que não dizer, de terror. Aqui ele também dá conta do recado (“Um conto possível”).

Típico de quem gosta da literatura e de quem tem domínio sobre ela (ou seria um pacto, um acordo entre amigos?), a gente se depara com trechos marcantes, tais como:

“- A gente deve virar música quando morre.”

“Ambulantes gritam os preços de suas mercadorias, pessoas correm para entrar nos ônibus, outras descem dos coletivos, caminham a passos largos. Os amigos conversando amenidades. A cidade é dele. A agitação, o cheiro, as pessoas. O Recife do extremo calor. E ali, naquele centrão, tudo se encontra. Você sabe, não é, meu filho? Eu estou em cada pedaço dessa cidade.”

Ou então:

“E segue. Não acredito em literatura que não tenha uma base no real. Um real fantástico até, interessante e fora do comum. Preciso sempre que algo de verdade tome conta de mim e me faça querer escrever. Que seja mais forte e violento do que qualquer coisa.”    

Ainda que em alguns casos o Ney tenha, talvez por escolha, evitado riscos maiores – coisa que escondeu um pouco seu talento – temos aqui um grande livro a ser descoberto. E diante de tudo disso, a leitura das 33 histórias me confirmou a ideia de que Ney Anderson respeita demais o fazer literário. E que seus contos, trabalhados com primazia e atenção, são retratos humanos riquíssimos, um mosaico de “gentes” e almas que habita a cidade do Recife. Sempre vivendo no limite do limite de algo. Para o deleite de todos nós, leitores sortudos e, certamente, atentos e felizes voyeurs de ocasião.

 

Gustavo Rios é baiano e autor de Rapsódia Bruta (Mariposa Cartonera, 2016), entre outros.

 

 

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1 comentário

  1. Rapaz, que texto maravilhoso. Daqueles que engrandecem o fazer literário. Só posso agradecer ao olhar generoso e perspicaz do Gustavo Rios.

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