Latejos vermelhos das rochas: o delicado e selvagem exercício do desvio
Por Carla Carbatti
O que buscamos num livro é a maneira pela qual ele faz passar alguma coisa que escapa aos códigos
G. Deleuze
Segundo Lucrécio, os átomos se movem para baixo através do vazio e pelo seu próprio peso. Em nenhum lugar ou tempo fixo eles se desviam e se chocam com outros átomos formando novos corpos, novos mundos. Não fosse isso eles cairiam nas profundezas do vazio como gotículas de chuva e não haveria nada. Em outras palavras, tudo que vive é uma desviação.
Também a linguagem, para Blanchot, só é possível no movimento de desvio. Diz o autor que ali onde tudo é indeciso (e onde não o é?), não se pode viver mais do que em um perpétuo desvio, pois ater-se a algo suporia que há algo determinado a que se ater. Seria retirar da vida sua imanência e condená-la a uma finalidade. Essa é nossa fragilidade e potência: a vida, força infinita, não se significa, não se explica, vive-se. É preciso, então, dizer, que a escrita viva é aquela que desliza, declina e se desloca.
Katyuscia Carvalho, no seu maravilhoso poemário Vermelho Rupestre (Ed. Patuá), já na capa, numa epígrafe, inicia sua incapturável dança com a vida: “preciso ouvir alto quando falas com essa tua voz rente às estrelas”. A voz, foz, a vida roça com o brilho fascinante desse astro morto, retumba, faz a curva e escapa. Entrar no seu livro é uma espécie de tateamento em uma caverna de Lascaux, onde o grito vermelho das rochas se desprega como que “escapado da fogueira”, “desgarrado do corpo”. Caverna que é o símbolo da origem, do nascimento, do útero. Mas, vejam bem, como em Clarice Lispector, seu texto está “ferido de vida breve”. A caverna, como lugar de re-nascimento, não seria mais do que um potencializador do “instante já”, “um calafrio na pedra” que propaga não a palavra original, mas suas infinitas reverberações. Corpo-corpus-copulamento: os latejos das rochas produzem signos vermelhos que transbordam a margem linguagem no delicado e selvagem exercício de tocar a vida. Vida amorosa, vida política, portanto, vida indomável. É possível que, o amor e a política, sejam as duas linhas de forças mais potentes da sua escrita. Não o Amor ou a Política, Instituições, mas amor e política criação de uma nova cartografia para a vida: ”habito o corpo de outra terra mas sinto o pulso e o peso do meu continente e recito uma encantação clandestina.” Seu texto em momento algum é fundação, ainda que dialogue com as vozes ancestrais das índias, dos índios, com o nome materno, com os tambores negros, com as “raízes do céu”, seu movimento mais poético, mais político e amoroso é o desvio, “sons de buraco”, “fissura no vento”, “pedras caindo”, “tanger de chuva”, linhas de fugas traçadas, em vermelho rupestre, disparos de novos problemas para errar em outras rotas, vibrações do verso que estremece e abre novas vias: passagens de vida.
“(…) Eu que me amparo em madeira que range”
Vermelho Rupestre é esse lugar de desorientação e encontro. Um ângulo mínimo de formação de um torvelinho: uma turbulência, “uma dança extraviada”. A agitação mesma naquilo que não se assenta, que sedenta, não sedia, experimenta as forças incolonizáveis das palavras, como “um pássaro insano abrindo fissuras na carne do céu”.
Carla Carbatti é mineira, das montanhas, do mar, nômade. Doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela. Poeteira com todos os átomos, possui moléculas poéticas ligadas à Subversa, Zunái, Germina, Alagunas, Mallarmagens, Diversos Afins, Escritoras Suicidas, Contratiempo, etc., à Antologia RelevO 5 anos, ao ESCRIPTONITA: pop-esia, mitologia-remix& super-heróis de gibi e agrupadas no livro autoral “Na Cadência do Caos”, editado pela Urutau.