Aperitivo da Palavra II

Necrocidade e poesia brasileira

 Por Gabriel Morais Medeiros

 

“O ovo primordial”: Claudio Parreira

 

I

 

Tenho tentado refletir sobre a cidade enquanto não-lugar, enquanto deserto gentrificado e militarizado, em poetas do Brasil contemporâneo. E, necessariamente, sobre os discursos de resistência que esse estado de cerco engendra, dialeticamente, em algumas vozes do tempo de agora.

Fábio Weintraub é autor de um verso que resume bem a contra-urbanidade que nos atravessa: a de um “país sem ruas” [Treme ainda, 34, 2015].

Rampas antimendigo, sistemas de sirene, a telepatia sibilante das cercas elétricas, drones de vigilância sobrevoando a churrasqueira e as cascatinhas pornográficas; guaritas e catracas cravejadas em canteiros que já foram públicos, num sonambulismo quase necromante; cartões magnéticos para carros blindados, que emergem de vidros elétricos brilhantes como rímel, nas portarias biométricas, à ponta de unhas sedosas (verso de Eugênio Gianetti), sob a carranca de seguranças impassíveis como totens, agentes secretos ou psicopompos. Bolsões residenciais cujo acesso é bloqueado por tonéis gigantes de concreto; rondas noturnas, esparsas ou constantes, camufláveis. Cidade de túneis, simbólicos ou cimentados, corcundas: numa palavra, necrocidades.

Chegou-se há muito ao estágio da arquitetura do medo como espetáculo de si mesma. Nas periferias-condomínios fechados, as clínicas de criogenia guardam em seus bancos de tutano as raízes de uns dentes-de-leite, em prol da des-utopia de futuro genético de alguns rebentos. “Você comeria um hambúrguer de células-tronco?” [Tudo pronto para o fim do mundo, 34, 2019], pergunta Bruno Brum, num verso que podia constar na tabuleta de cada mallzinho à entrada de um residencial de luxo, como a reposição do velho emblema diante da Cidade Dolente. Só que ao contrário: reconquistem toda a esperança, vocês que acessam este lugar.

Aos arredores dos recantos de segurança, minimiamis, vias de trânsito rápido, viadutos, ausências de linhas de ônibus e passarelas espaçadas, de longe a longe, como as pernas longilíneas dos elefantes de Dalí: um território, basicamente, onde é impossível andar a pé, por nele haver muitos campos-de-força que repelem quaisquer alteridades, mendicâncias, laços de fraternidade e/ou presenças alienígenas.

Do outro lado das autopistas, refletindo as gated communities, opondo-se aos macrocamarotes, estão periferias-quebradas, com corpos à mira de remotos helicópteros, que pipocam com sua “hélices de carne”, nas palavras de Bolaño.

 

 

“Hitch”: Claudio Parreira

 

II

 

Nos belíssimos versos de Mar Becker [A mulher submersa, Urutau, 2020] pode-se ver, por outro lado, o que terá ocorrido com a necrocidade. Seu tempo é o da rememoração e, justamente por isso, o da composição profética. Em Becker, a necrocidade é eixo quase abstrato, evanescente, que aguarda a desaparição.

Para a autora, o meio urbano é o sussurro de uma falência, de uma hecatombe anunciada. “Vem, precisamos fugir da cidade/para muito longe”, dizia Lichtenstein, num poema chamado O passeio [Der Ausflug, 1913].

Becker também estoura esse tipo de aclimatação urbana. O mundo vai acabar. E este mundo, no entanto, o atravessamos! Por isso, A mulher submersa cintila como uma barra de transferência fluorescente, bruxuleando no leito de uma cratera oceânica, num enigmático código-morse.

Assim, a linguagem dos mortos, e sobretudo das mortas, dirige-se a nós através desse livro, por meio de uma cartografia doméstico-marítima, e enquanto marítima, imapeável, desolada e insubordinável:

“a mulher da região da serra sem fim lava a calcinha sempre no
banheiro, sob esse outro paradigma náutico – quando no vapor
o espaço-tempo resgata o mar como desolação.”

[serra sem fim]

Paralelamente ao tempo diluvial, A mulher submersa reergue uma cidade de baldios e assombrações, que nos prometem meandros e ressignificações, transmitidas sempre do país desconhecido. Este é um dos motivos que talvez insira a poeta numa categoria de vocalização da transcendência. Na poesia de Becker, as ruínas reemergem das lagunas, e os mortos apontam as saídas:

“na casa fabula-se outra casa. em ruínas”.

[serra sem fim]

A necrocidade, para Becker, é fase-em-devir, e não categoria estanque. É algo que se vasculha no passado, redimível após a catástrofe que a poeta profetiza. As ruas e os dias se apagarão nos azimutais congelados sob o granizo das calotas polares. Cada época sonha a próxima.

Faz-se necessária, por fim, uma palavra sobre a forma de seus textos.

Ela bem reflete essa condição de transitoriedade diluível. De vias-vascularizações diferentes: as ruas de um inferno que pouco a pouco resfolega, inundado, encharcado, rompidas as barragens de Guarapiranga.

Porque os fluxos verbais e compassos da poeta são longas frases rítmicas, aquáticas, cadenciadas, como uma lagoa de neve sombria sob o manto de Desdêmona, lua de Urano; os versos de Mar Becker demoram, aparentam e segredam melancolia e agouro. São um Grande Oceano da Espera, uma paisagem lunar; um golfo de metais pesados, muito tempo após a extinção do Antropoceno.

Só que, pensando em seus dizeres, será que neles não germina, da mesma maneira, uma intensa felicidade? A que nos promete um outro mundo possível, num reino que não é deste mundo?

Não nos injetaria a poesia de Becker, na superação da necrocidade, uma dose cavalar de alegria?

 

 

“Sempre!”: Claudio Parreira

 

III

 

O grande poeta Reuben, com seus falares estranhos e enigmáticos, também atravessa a necrocidade, mas de forma diversa. A temporalidade de seus mundos é mais a do presente, a do acúmulo, a dos lixões, e a do empanturramento.

O mundo-lixo, em Reuben, é zigurate colossal; em Becker, já foi varrido do mapa há 400 milhões de anos, numa inundação mítica. A coordenada de Reuben é a de hoje; a de Becker, o que terá sido hoje.

Cercadas por um labirinto em decomposição, as vozes de Reuben abrem caminho, cavam trincheiras, comungam desejos, mas também enxergam transcendências: emissões pélvicas de luz, amoras glórias da terra, reggaes das bacantes, peixes boi de boa: vê-se que a natureza é que lhe assobia com fulgor, com fins em eternos-retornos. E também as visões espaciais, dimensionais, com ele se comunicam. Estive aqui muitas vezes/ainda acho bonito é um texto que bem o demonstra, com seus lindos heptassílabos.

E o mencionado amontoamento de monturos, entroncamento da necrocidade, e umas caçambas abarrotadas, mas cercadas pela transcendência (a natureza e o espaço sideral), por sua vez, os vemos em:

“d vz em qd a areia me visita
urubus reviram o meio da ilha
boto fogo no corpo a pé na ponte a
astronauta a pé no gargalo do dia
longes lobos guarás assoviam”

[Estrelas brilham, mastigam lixo, Jabuticaba, 2019].

De maneira análoga, o sujeito em Reuben é o das corporalidades múltiplas, que nunca se esvaziam ou desvanecem; ameaçadas, no entanto presentes num território não abandonado, e ainda não varrido pelos paredões aquáticos da hecatombe.

Ameaçados, estão à mira: os caiapós, os kanoés, os ka’apor e os mendigos.

Os drones os caçam – porque toda necrocidade estende-se aos céus, e se fundamenta no domínio dos céus, a fundo. Suas raízes são as nuvens, os limites do globo. Teoria do drone.

/ temporada de caça / ao índio ka’apor / drones tele guiam / kanoés / caiapós / varis vivos / encobrem a cova rasa urubus farejam / temporada de caça / / a navalha / some / na mão do mendigo / noite revirada / corpos d caídos estrelas brilham / mastigam lixo / incorporo a navalha da prosódia dos mendigos / cada narciso / come da / própria sede / a cabeça do justo / / esmagada na parede/ sentenças / vendidas por / juízes / / sentenças vendidas /por juízes / / fazendas maiores que países /

[Escaldante, Livros-fantasma, 2017].

Estrelas brilham/mastigam lixo: os olhos carecas das câmeras dos drones abatedores, por um lado, e a corporeidade dos caçados, por outro. A garra drônica da necrocidade, abstrata e letal como o capital, versus a fuga entocada do catador, térrea e teimosa como a vida. A morte que pode vir do céu ou da canetada jurídica, etérea e abstrata em ambos os casos.

Noutras palavras, agressão versus resistência.

Não à toa, o poema, ao denunciar a caçada humana, bate de frente com o latifúndio, o hectare produtor de covas: o latifúndio, metáfora última da necrocidade e de sua contra-utopia, projeto necropolítico de um país sem ruas.

 

Gabriel Morais Medeiros (Campinas-SP, 1988) é autor de ‘Pornografia em extinção’ (2019) e de ‘Andrômaca, quarenta semestres’ (2016), livros de poesia publicados pela Patuá. Tem trabalhado como professor de literatura no ensino médio, desde 2007, em diversas cidades do interior paulista. É responsável pela Ofícios Terrestres Edições, micro-editora voltada a humanidades e literatura, criada em 2019. 

 

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