Aperitivo da Palavra II

QUAL A DISTÂNCIA ENTRE OS HOMENS E OS BICHOS?

 Por Gustavo Rios

 

 

Júlia Grilo poderia ser apenas uma jovem estudante com pretensões artísticas não muito bem definidas. Afinal e a priori, o que às vezes se mostra na superfície é tão somente isso: uma escritora que publica um livro, num contexto em que publicar (no sentido de imprimir, divulgar nas redes e se considerar literato) se tornou relativamente fácil. Mas eis que esse “relativo” pode muito bem nos enganar.

Afora esse papo cabeça que mistura relatividades e jovens com ganas de escrever, o que posso dizer é que, com seu primeiro livro, Cães, publicado em 2021 pela bravíssima Penalux, Júlia me pegou na contramão e no contrapé, no sentido de boa surpresa, não aquela surpresa que vem depois do desdém; aquele lance de olhar a pessoa e pensar em segredo “Esperava bem menos de você”, ou “Achei que você fosse mais uma nesse mercado de pulgas”. No único encontro que tive com ela, numa live de divulgação da coletânea Soteropolitanos, de cara percebi a firmeza e a seriedade do propósito da quase-psicóloga Grilo.

Portanto, e lutando contra esse desdém paternalista (o cara de quase-cinquenta que resenha versus a jovem escritora), tentarei explicar minhas ideias acerca do livro (que, é bom frisar, conta com uma belíssima capa). E logo de imediato, já posso usar a meu favor o fato dela ser uma futura psicóloga – isso se ela não se invocar e enveredar de vez na escrita; coisa que, acho, ela faria com moral.

Vamos falar então sobre análise. Mas não no sentido “Jungiano” da coisa. Eu quero falar é sobre o olhar atento e extremamente “analítico” de Júlia, já que em Cães uma das coisas que mais me chamou a atenção foi o interesse da autora em esmiuçar e detalhar todas as questões propostas por ela mesma e pela história em si – o andamento de um bom livro às vezes foge de nosso controle e de nossa vontade; daí que ele se impõe e também propõe.

Os parágrafos às vezes parecem longos, e os instantes em que a descrição chega no limite não são poucos. Todavia, ainda que tal recurso seja frequente, nada é sacal. A escrita de Júlia sempre exige do leitor atenção, inteligência e entrega. Mas nunca paciência, ao menos aquela do tipo “estou de saco cheio”.

 

“Júlias”

 

Ainda que a autora se mostre firme em seu trajeto, considerando parte das ideias expostas no tópico acima, é bom que se repita que tal escolha não implica num livro maçante.

Nos trechos em que Júlia é descritiva e, digamos, cerebral, podemos enxergar facilmente um bom bocado de poesia (misturada à prosa, por supuesto). Além do mais, ao se pôr inteira na história, talvez de acordo com uma ideia de Coetzee, em que “no calor extremo da criação a identidade individual do artista é consumida e monopolizada por seu lado criador” (1), a escrita de Júlia Grilo se mostra bem acima e além de um simples amontoado de frases cabeçudas e falsamente poéticas.

A complexidade no texto algumas vezes se encerra com uma frase simples que busca concluir uma ideia. E tal movimento se mostra eficaz, na medida da poesia utilizada, e, principalmente, do momento vivido – por vezes a narradora se mostra belamente pueril, noutras arredia e rebelde; as metáforas e as reflexões se encaixam numa boa, enquanto isso.

Como exemplos, destaco:

“Vinha até meus pés, esticava as patinhas e enfiava a cara por entre meus joelhos, lambendo-os até ser atendida. Eu atendia; não demorava muito para atender, exceto quando queria vê-la gracejar por mais tempo, os olhinhos brilhando. A vontade era sufoca-la de beijos – e torcer para que nenhuma pulga me atingisse.”

“Nesse mesmo período, meus pais começaram a carinhosamente me chamar por lobisomem, numa tentativa desconcertante de amenizar o espanto que causavam os meus olhos vívidos, cintilantes, contra os quais eles se chocavam em quase toda madrugada (…). O dia me irritava, o calor incessante, a quantidade de gente que se movia, que me atrapalhava.”

“Já seus ossos, por sua vez, foram vinculados conjuntamente dentro de uma designada lógica própria, reminiscência bruta dos vincos de sua mãe, dos sulcos do seu pai, da posição em que brotou do ventre, de como de lá foi retirada e passou a rastejar faminta para as tetas pingando leite; do sangue fetal que lhe permaneceu seco e digno.”

Os poucos momentos em que a sonoridade me incomodou não reduziram em nada o andamento da obra (“A culpa ecoava ininterruptamente ao meu redor, perseguia-me com violência, num fulgor insuportável”; “Qualquer coisa que ameaçasse fissurar a consistência deste véu era recebida com muita violência.”). Mas sugiro revisão, se possível.

Ao abrir o jogo e contar sua vida, essa jovem soteropolitana, criada no Recôncavo Baiano, eleva a qualidade do seu trabalho, o particularizando (o mundo a partir de sua individualidade, mesmo que na dedicatória do meu exemplar ela meio que defenda outro ponto de vista). Dessa maneira, Cães se torna único e cativante, a partir do olhar e da vivência de uma garota que, afinal, vai crescendo e sentindo tudo de maneira intensa.

Para “fechar essa conta”, concluo que a tal complexidade de que tanto falo não é daquelas que servem para justificar braçadas no raso em temas profundos. Aquele papo furado de quem sempre se esquiva do problema ao dizer para si e para o mundo “Isso é muito complicado. Não arrisco um juízo de valor”. Júlia não foge ao nado, nem à luta; e tanto um quanto o outro possuem muito de coragem, fôlego e escrutínio. Dessa forma, somos levados a refletir sobre várias coisas. Tendo como ponto de partida as diversas “Júlias”. Que seguem evoluindo a todo instante, na cara, no crown e na coragem.

Eis alguns exemplos:

“Eu fui convocada a assistir ao espancamento como se fosse ele um espetáculo, estruturado de tal forma para que assim eu aprendesse as consequências que recairiam sobre meu corpo, caso eu me comportasse mal também” (sobre um fato ocorrido com uma prima).

“Mas o amor e o conhecimento carregam a mesma lógica por trás de seus funcionamentos. Talvez não só se assemelhem, feito coisas distintas que se encontram em paralelo, como cheguem a ser exatamente o mesmo: é preciso amar para estar disposto a conhecer, e é preciso estar disposto a conhecer para amar.”

“Há quantos passos de distância entre a maciez curiosa de um recém-nascido e a esperteza barbada de um homem adulto, de pênis rijo e lábios ágeis? Quão fina é essa linha que separa as suas mamadeiras de leite dos seus sagrados copos de cerveja puro malte? Mas o que é que separa estes tão fortes e espertos e cerebrais meninos das lágrimas primitivas que lastimavam quando foram paridos.”

 

Feminismos e protagonismos

 

Dentro de uma visão esquemática, mas não menos importante, que define protagonismo como uma ou poucas figuras centrais em detrimento a todo o resto, eu até poderia me contentar em dizer que em Cães temos somente duas protagonistas: Júlia e, de certo modo, Cafeína, a cadela – se isso for possível, conforme os estudiosos.

Entretanto, e não querendo contestar quaisquer teorias (não tenho cacife para tanto), posso afirmar que senti o peso de outra personagem na história: a mãe da autora-narradora.

Entendendo peso como algo marcante, me aventuro a dizer que, sem essa “persona”, talvez o livro não tivesse tanta força. Evidentemente ao me ler assim, você pode ficar confuso. O que é cabível (afinal, ela é ou não é protagonista? Gustavo anda fumando o quê?). Com os fragmentos abaixo, porém, talvez eu consiga me explicar, mesmo correndo riscos ao expor uma pequena parte do que li sobre:

“Ela mesmo me dizia, fingindo brincadeira, que eu havia roubado a sua beleza. Nasci parasita insaciável, tirando-lhe a graciosidade, obrigando-a a permanecer acordada por noites a fio, sugando-lhe os peitos doídos. Minha mãe quase morreu ao me parir. Seus pés saltaram do número 35 ao número 38. Até hoje eu desconfio que a violência que ela impunha contra mim na infância foi uma resposta à violência imposta sobre ela, imposta por um mundo inteiro.

“O feminismo acadêmico do qual eu tanto me orgulhava não havia me ensinado metade do vigor que mamãe me ensinou.”

Levando-se em conta o fato de que, apesar da importância, a mãe de Grilo não é única mulher a surgir e a definir o rumo do livro (que foi dedicado a ela, é bom que se diga), isso sem falar nas cadelas, mais uma vez invento outra teoria: para mim, Cães é um livro essencialmente feminino. E boa parte de sua beleza vem daí.

O que nós, homens, costumamos chamar de “universo feminino” parece se mostrar um pouco para o leitor. E Júlia mais uma vez me surpreende ao se utilizar do alegórico e de uma boa dose de fabulação, na tentativa de nos fazer enxergar esse universo, que atrita com a realidade ainda hoje “imposta” às mulheres, realidade bem distinta da que nós, homens, conhecemos.

No caso de Cães, porém, a fábula quando utilizada não se parece com aquela tradicional, em que a “moral da história”, necessária em algum momento de nossas conquistas cognitivas, é a única resposta viável (o Lobo que sopra enquanto os Porquinhos trabalham; moral: dê duro e tenha uma casa de tijolos). Para mim, o uso de animais no livro, no caso os cachorros, tem mais a ver mesmo com o esperto Pedro Vermelho, citado no prefácio pelo professor Wagner Teles. Ou até com um pouquinho do Orwell, sem o lance da distopia.

No entanto, e acima de tudo, os cães que existem e coexistem na obra são escolhas feitas pela autora. Prioritariamente por causa de seu declarado afeto por Cafeína – a mesma que, segundo Júlia, “era tão miudinha que cabia nos meus sapatos” -, além de ser fundamento para Grilo desenvolver bem a sua arte. Arte que, conforme escreveu Laerte (sim, ela: a Laerte-Genial!) na orelha do livro, se organiza “(…) às vezes em folia, às vezes em sofrimento.

 

A humanidade em Cafeína

 

Com o desejo de se tornar humana, pois só “quem pode abrir os portões são os humanos”, em determinado momento do livro Cafeína foge. E dentre todos os acontecimentos envolvendo de forma direta a cadela, talvez esse seja o mais importante para mim, pois ele causa uma mudança no ritmo, na forma e na narrativa de Grilo.

Após um acidente corriqueiro e um distanciamento entre Cafeína e a sua dona (a própria Júlia Grilo), presente no capítulo 8, “Café” começa a planejar sua fuga, ainda que o desejo de partir talvez não seja resultado direto desses dois eventos. Então à noite, quando a garagem se abrisse para a entrada do carro do pai de Júlia, “Café” iria se esgueirar entre o veículo e a parede, correndo para bem longe em seguida.

“Foi o que ela fez.”

A partir desse ponto, o rumo da história dá uma boa guinada. E mais uma vez somos pegos de surpresa. No contrapé e na contramão.

O que vemos a seguir é uma sucessão de fatos e acontecimentos envolvendo os cães. E aqui Júlia consegue desenvolver a história com uma petulância incomum, como se ela não enxergasse sequer os riscos adiante: o de misturar formas de escrita e cair inevitavelmente num buraco sem fim de obviedades infantis, tolices, falcatruas intelectuais e imitações no varejo.

São poucos os capítulos onde acompanhamos Café em seu mundo. Mundo em que cachorros conversam, sentem inveja, lutam por posições de poder e se afeiçoam uns aos outros. A petulância da autora, todavia, em vez de cegá-la para os erros, confirma seu talento e se converte em moral, intenção e mais uma vez coragem, principalmente numa estreia. Pois, para mim, muita gente competente na escrita derraparia nessa vereda.

Júlia nos provou que o risco valeu a pena.

A transição entre uma visão “humana” para uma visão “canina” não nos agride. E a mudança se faz numa boa, a partir da simplicidade de uma frase-ato (“Foi o que ela fez.”) que nos mostra a concretização da fuga e do plano (eu disse “plano”) de uma cadela (eu disse “cadela”).

Daí que Cafeína, com “os olhos saltando como espátulas de batedeira, brilhando junto à lua”, segue “passando em frente a árvores que miavam, capins que coaxavam, muros que latiam, sempre adiante, empurrando com as fuças a vontade de escorrer diluída, desgarrada das coleiras.”

Ratificando, digo que colocar num animal o desejo de se tornar humano, e fazer isso de forma bacana e coerente, não é para muitos. Agora imaginar que esse desejo de se humanizar surgirá com leveza e poesia, servindo também de suporte para questionamentos, já paga o preço e justifica minha labuta ao tentar explicar a vocês o romance.

“ – Quem é você?

– Eu sou Cafeína (Por que sempre faziam essa pergunta?)

– E o que você está fazendo aqui?

Ela não sabia como explicar. A mãe, os humanos, a dor, Duquesa (a boxer alemã que divide a casa com Café), o portão, tudo, ela não sabia como explicar.

– Eu estou me tornando humana.

Riram.”

Entendo que as palavras “mãe”, “dor”, “portão” e, principalmente, o ”tudo” que encerra a frase dizem muito sobre Júlia Grilo, nossa estreante-petulante.

Portanto, afirmo que o fato do livro ser feminino ou não, fábula ou simples ficção, não tem importância. Cães é merecedor de elogios e de atenção, e pronto. Pois a obra, ainda que não se dê ao luxo de ser facilmente entendida, dentro da definição de um estilo, se mostrou para mim profunda, interessante e envolvente.

Mesmo que a gente não entenda de que se trata (ficção, fábula, autoficção ou literatura à toa), digo que Cães é uma estreia “de prima”. Além de ser uma amostra da literatura feita na Bahia atualmente. Pouco importando o resto, pois, conforme E. M. Foster, o “(…) teste final de um romance será a nossa afeição por ele, o que é o mesmo teste dos nossos amigos e de todas aquelas outras coisas que não conseguimos definir direito.” (2)

 

……………(1) Trecho extraído da resenha “A literatura segundo Coetzee”, de Willian Vieira; revista Quatro Cinco Um, edição 41. Mas relaxem: o livro resenhado já está nos Correios. 

…………..(2) Trecho da página 44 do livro “Aspectos do Romance”. Esse eu li até o final.

 

Gustavo Rios é baiano e autor do livro Rapsódia Bruta (Mariposa Cartonera, 2016), dentre outros.

 

 

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