Aperitivo da Palavra II

CONTEMPORÂNEA PELO AVESSO

Por Sandro Ornellas

 

 

Acabo de ler Danny, narrativa escrita por Maria Elvira Brito Campos, publicada em 2022, em bonita edição de bolso pela piauiense Cancioneiro. Novela lírica, melancólica e, de certa forma, geracional, o que me tocou particularmente. Como diz Antonio Candido em famoso prefácio a Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Hollanda: “a certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço do passado sem cair na autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro de muitos”. E a narrativa de Maria Elvira, sem ser propriamente seu testemunho, possui algo do teor testemunhal que diz de uma experiência geracional, mesmo quando ficcionalizada. A própria prefaciadora, Katia Borges, diz que o personagem título “se parece muito com os melhores amigos que tive”.

E do que trata Danny em seus 45 pequenos capítulos, quase fragmentos, vários com um único parágrafo? Da errância melancólica do seu protagonista ao longo dos dias, encarando uma grave doença – nomeada apenas como “a bola cinza” no interior da sua cabeça –, da fiel amizade de Laura, das paixões e amores fugidios e irrealizáveis de ambos, de suas solidões, compartilhadas ou não, do seu confinamento e da consciência do envelhecimento. Embora pudessem ser tratados de modo independente, todos esses “temas”, digamos assim, vão e vem ao sabor do humor dos personagens no fluxo narrativo, pois a autora investiga a experiência de ambos, não os “temas” em si.

São personagens que possuem, por um lado, traços relativamente específicos. Danny é artista plástico e Laura, tradutora. Mas não é isso que está em questão na história, cujo foco varia de um para o outro, com ênfase sempre maior na expectativa de Danny com a cirurgia e em seu cotidiano entorpecido à base de remédios, mesmo depois de livre da “bola cinza”. Ele vive com dois gatos; ela com um cachorro. E formam um retrato cuja melhor definição ao longo das páginas me aparece no capítulo 26:

 

“Laura estava triste. Foi até a sacada, pensou em Danny. Um sobrevivente. Tão pouco e tudo. Pássaros na garganta. Ela sabia que não estava preparada para nada disso de novo.

Janelas abertas. Coisa boa é morar no primeiro andar. Laura sorriu para as crianças na rua e voltou para a sala. Sentou-se no sofá, seu cantinho gostoso, medicou os dedos, Johnny lhe fez um afago, quando o telefone tocou: Hey, sugar, take a walk on the wild side.

Danny sempre a salvava!”

 

É assim, acompanhados pela trilha sonora de Lou Reed, somos conduzidos por uma narrativa cheia de desvãos afetivos e líricos e de certa forma cúmplice dos dois personagens sobreviventes do último quarto do século XX. É essa cumplicidade que cria, por outro lado, o aspecto geracional que sublinho na narrativa, seja pelas referências explícitas, seja pelas implícitas.

Há algo de selvagem e inocente na história escrita por Maria Elvira. Selvagem e inocente como a canção de Lou Reed e as histórias dos que não sobreviveram àquele quarto de século: Caio F., Ana C., Leonilson, Cazuza, Renato Russo, dentre tantos outros que se pareceriam com Danny e Laura, se tivessem vencido o fato de crescerem durante a ditadura, a mesma que levou muitos à loucura, ao suicídio e, de certa forma, se prolongou matando outros através da epidemia do HIV. Sobreviventes, selvagens e inocentes, Danny e Laura vestem a melancolia de uma geração que chegou à segunda década do século XXI fragilmente equilibrando solidão e amizade, tesão fugaz e esperanças de amor, lucidez e entorpecimento, juventude e envelhecimento, vida e morte. O eixo que sustenta esses pratos na história é a melancolia que os personagens carregam, embalados por canções daquele quarto de século, que parece não os ter abandonado e lhes dá uma aura de tristeza, que, todavia, traz muito da beleza narrativa de Danny.

Na minha leitura, apenas em dois momentos percebi tratar-se na verdade de uma história do século XXI. Quando Danny, flertando imaginariamente com Bruno, pensa nas diferentes referências entre ambos: “Em tempos de aplicativo, Bruno não iria compreender essa referência tão Satellitie of love, tão David Bowie em Marte, tão fora daquele mundo…”; e quando, depois de repentinas descrições do silêncio e vazio das ruas, Laura obriga Danny a se mudar para sua casa, manda-o tomar banho seguindo “protocolos” e fala-se em “confinamento”, em menção cifrada à pandemia da Covid-19.

Talvez haja mais indicativos dessas duas primeiras décadas do atual XXI, mas a extemporaneidade da narrativa e dos dois personagens, seu descolamento subjetivo em relação ao mundo social e as referências musicais citadas ao longo do texto não deixam dúvida tratar-se de “sobreviventes”. Eu diria mesmo que a narrativa de Maria Elvira é uma narrativa sobrevivente, pois lança mão de uma atmosfera pop até certo ponto datada, em relação ao que passou a se escrever no século XXI. E aí está muito do charme dessa história. Se a profecia de Andy Warhol sobre a cultura pop foi de que todos teriam direito a quinze minutos de fama, para depois cair no ostracismo, esses quinze minutos acabam funcionando como referências histórico-geracionais. Se a cultura pop vive da descartabilidade, ela também permite entender muito da segunda metade do século XX através, por exemplo, da trilha sonora, como é o caso, em Danny, de Lou Reed, Gracie Jones, Patti Smith e David Bowie rondando todo o tempo a vida dos personagens. E é muito com o espírito de Lou Reed que a narrativa se constrói, transformando Danny e Laura em alguns dos personagens do álbum Transformer, de 1972, do compositor novaiorquino.

Se há um pop alegre e festivo, registre-se que o pop de Danny, no entanto, é triste e sombrio. E é justo aí que percebo sua maior contemporaneidade. A contradição do pop, desde as ampliações fotorrealistas de acidentes fatais feitas por Warhol, hoje estão mais visíveis do que nunca. Ídolos teen do pop coreano (e não só eles) se suicidam em série, mostrando os limites tóxicos da felicidade e esperança vendidas pela indústria do entretenimento. Já a melancolia e solidão de Danny e Laura, se inicialmente faz sentido serem lidas como de uma geração que envelheceu, também tem muito a ensinar à geração que cresce sob as tecnomaravilhas virtuais do neoliberalismo e que sofre igualmente, ou talvez ainda mais cedo, do que quem chegou à pandemia com pouco mais de cinquenta anos.

Danny, portanto, possui o que um pensador disse tratar-se da definição do contemporâneo: o obscuro, o invisível, o solitário, o sombrio e desatualizado, em um mundo no qual tudo e todos buscam ser visíveis, alegres, festivos, produtivos e estar no fluxo e na moda. Concluo a leitura assim, com a sensação de que Danny é uma narrativa contemporânea pelo avesso, conseguindo falar daquilo que todos sabem estar à espreita, mas a que ninguém se refere por estar fora de moda.

 

Sandro Ornellas é poeta, escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Bahia. Autor de Dói-me este mundo de violentas esperanças (Patuá, 2021), Em obras (Cousa, 2019), Linhas escritas, corpos sujeitos (LiberArs, 2015), dentre outros.

 

 

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