NENHUM MODIANO NAS ESTANTES
Por Mayrant Gallo
Há algumas semanas, ao saber que tinham outorgado o prêmio Nobel de Literatura 2014 a Patrick Modiano, fiquei duplamente feliz: como leitor e autor. Na condição de leitor, porque acompanho as publicações de Modiano no Brasil desde os anos 1980, e é como se ele, junto a mim e outros leitores, “esculpisse” sem o saber, livro a livro, o ambicionado prêmio; na de autor, sinto-me naturalmente recompensado, porque, de fato, um escritor recebeu o Nobel por fazer Literatura, e não política literária ou por praticar atividades de arredor, usando a Literatura como cabide ou degrau. Prêmio justíssimo, portanto.
À parte Dora Bruder, que reconstrói um fato real da perseguição alemã aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, o que por si só já constitui uma lição de humanismo, todos os demais livros de Modiano publicados no Brasil, e que se assemelham na condição de romances breves, de pouco mais de cem, 120 páginas, apresentam aspectos altamente relevantes para o prazer e o proveito do leitor, bem como para a sua formação e seu aprimoramento. São peças de um virtuose de sua matéria. E não importa o assunto, se o nazismo ou o amor, o tratamento é sempre o mesmo: os personagens parecem assombrados, engolidos pela realidade, que não conseguem compreender, muito menos dominar. E, como num sonho, vão se deixando conduzir e imolar. C’est la vie.
Há anos que recomendo a leitura de Modiano a amigos e alunos, mas, infelizmente, poucos me levaram a sério. Ou talvez só este e aquele, mais próximos, o tenham feito. Agora… Bem, agora é realmente outra história. Mas a verdade é que todos os livros de Modiano publicados pela Rocco no Brasil estão esgotados. O leitor vai ter que esperar por edições novas. Enquanto alguma editora ou mesmo a Rocco as preparam (de forma apressada, certamente), o leitor mais afoito terá que se aventurar em idas aos sebos e se contentar, não raro, com exemplares surrados, enxovalhados, oferecidos a preços não mais assim tão convidativos, afinal o cara agora é um Nobel, e o livreiro espera lucrar com esta rubrica.
Não sei se por influência do gosto do leitor brasileiro ou se por circunstância de nossa educação, sempre uma lástima, entra governo sai governo (e o atual, firmado na trapaça, constitui o paroxismo desta vocação para o desprezo ao conhecimento e às artes), o certo é que nossas editoras insistem em publicar mais do mesmo (autoajuda sempre, “coelhos” enquanto dure a inocência dos leitores, “vampiros” por um tempo de sangue, “tons de cinza” a par de ereções e mamilos tensos etc.), ao passo que esnobam a Literatura em quase todos os seus gêneros e idiomas. E, então, de súbito, somos surpreendidos por um fato como este: o autor prêmio Nobel de Literatura de 2014 não tem, muito embora sua extensa obra, sequer um livro em catálogo no Brasil. “Nenhum Modiano nas estantes”, poderíamos dizer.
Afortunada foi a CosacNaify que, ao programar para este ano a publicação do infantojuvenil Filomena firmeza, que reúne o texto de Modiano aos desenhos do extraordinário Sempé, demonstrou mais uma vez a sua vocação para as boas escolhas e a qualidade literária. E, se tornou, não por acaso, a porta de entrada de Modiano ao leitor brasileiro.
Certa vez escrevi este poema, breve como deve ser: “À tartaruga a linha de chegada parece longe,/ Mas, passo a passo, ela a transpõe,/ Enquanto aos coelhos cabe alcançar o horizonte”.
Claro que estou citando a velha fábula tantas e tantas vezes referida por tantos e tantos autores, nos quatro cantos do mundo, mas que parece compor uma alegoria perfeita desta inusitada situação: de que um autor como Modiano, paciente e cioso do seu ofício, chegue naturalmente, e talvez sem o desejar, aonde muitos coelhos afoitos gostariam de estar desde o primeiro momento. Ao menos para mim, seu fiel leitor, esta ironia tem sabor de desforra.
Mayrant Gallo é escritor e professor. Autor de “Os encantos do sol” (2013) e “O inédito de Kafka” (2003).
Mayrant, vc é fantástico. você inspira, cara.
Sei nao, este ultimo Nobel de literatura me remete irresistivelmente ao Nobel da paz atribuido ao novel presidente que era entao Obama, e que sem duvida paralisou um bocadinho mais sua possibilidade de açao que a tradiçao politica americana ja restringia. As comissoes do Nobel nem sempre acertam, o que afinal é apenas humano…
Lê-lo é muito bom caro escritor Mayrant,abraços.
Pensar: eis a questão! Só nos resta escavar para, quem sabe, encontrar Modiano. E o seu texto é para balançar o leitor!