Aperitivo da Palavra II

Estradas feitas para se perder

Por Sérgio Tavares

Trilogia do Asfalto Capa

Um dos efeitos mais audaciosos do exercício narrativo é extrair da linguagem uma sonância que repercuta os traços da ambientação da história. “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, é um exemplo vigoroso deste emprego conectivo. O romance, que se passa, em grande parte, na geografia desidratada do sertão nordestino, empresta desta paisagem a ressequidão que constitui sua tessitura, suas frases concisas e esfarelentas. Desde a abertura, a prosa se apresenta destituída de viço, compassada pelo demorar dos pés que avançam quase terra, que se racham quase carne.

“Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala”.

Em “Trilogia do asfalto”, o baiano Dênisson Padilha Filho se arrisca na execução do mesmo procedimento, e se sai bem. Os contos que compõem a breve coletânea (dois dos quais previamente premiados) são construídos através das economias verbal e narrativa, incorporando ao alicerce semântico a aridez por onde circulam seus personagens. Indivíduos cobertos pela “poeira cortante” das estradas, da vida que pretende uma aliança com o passado a fim de endireitar a rota para o futuro. O caso é que o presente se mostra desgovernável, um progredir que não dispõe das indicações devidas.

“Era um céu de fotografia. Mas pra quem vive à beira daquela rodovia, o azul era tempo encerrado pra chuvas; o calor fazia algo como mutirões pesados. Primeiro, o castigo das nove, depois, um mais severo às onze. E então, já não se via mais ninguém andando pelo asfalto. Janelinhas e portas das casas eram bocas ofegantes. Longe, algumas serras tremiam. Um ônibus parou e ele desceu, só ele, com sua mochila. Parecia não estar muito certo do que acabara de fazer”, assim tem início o rascante “Naquela manhã de fogo”.

No conto, um viajante faz uma parada numa venda à beira de uma rodovia, gerenciada por um sujeito desolado e seu pai, um velho cego de um olho. Ele se dirige à cidade vizinha, onde nasceu, em busca de resposta sobre o homem que entende como seu pai. Protegidos das “ondas de calor que assolavam a terra” do lado de fora, empreenderão um diálogo de contenções que revelará que, na expectativa de que algo aconteça, estarão presos em suas próprias existências. “A gente nem vai nem vem… a gente fica”, conclui o vendedor.

Dênisson trata da impotência, de uma maneira alegórica. Apesar de lançados em jornadas, seus personagens ora seguem estacionados na ideia de partida, ora fazem um movimento contrário em seus íntimos. No conto seguinte, “Como assim, dar pra ele?”, a narradora passa em revista a relação com o marido, enquanto viajam, a contragosto dela, rumo a uma fazenda de café, por conta de um feriadão. No carona, vai um amigo, que terá um papel dissonante dentro do fluxo mental no qual ela busca entender como o casamento atravessou a paixão e chegou a duas pessoas que sequer se olham.

“Eu tenho uma vida inteira pra lhe contar; você nunca quis saber, é verdade, mas antes, ao menos você era meu herói e eu era sua virgem roubada; você sondava meu fogo e meu amor por você. Hoje, pouco lhe importa o gelo da minha pele, que já se esqueceu de seus dedos. O que mais dói em mim, já quis saber nos últimos dois anos? Sem chance, não é? Por isso me enojam suas certezas, e mais, contar a você de minha vida, minhas alegrias, é hoje, mais que uma necessidade, é uma vontade; eu quero ferir você, faço questão”, confessa.

Novamente a prosa se alia ao cenário, criando pontos de tensão em momentos em que a estrada se mostra mais perigosa. O autor entrega a condução da narrativa a uma voz que, por não conseguir se propagar no outro, torna-se perdida, solitária. Isso se agrava no último conto, “Roupa íntima, amor felino”, sobre um fracassado que separa a vida entre se embriagar e detestar os gatos que lotam o prédio em que mora. Amargurado por conta de um amor não correspondido e sem emprego, passa a ocupar o quartinho do zelador, onde começa a decifrar os hábitos dos moradores de baixo para cima. Obviamente, quando não está num bar, à procura de alguém que ouça suas tristezas.

“Em todo boteco há um pouco de carinho de mãe para com seus assíduos. Você senta no bar ou joga sua tonelada de dores no balcão e ele lhe põe uma dose como se dissesse, ‘esqueça, filho, amanhã as ruas estarão cheias de flores’. Não é impossível, mas é muito difícil encontrar um garçom simpático quando se pisa num bar pela primeira vez. Se você volta no dia seguinte não. Aquilo pra ele é um elogio e ele retribui com gentileza. Na primeira vez você é só mais um aventureiro tentando se refrescar, e garçons detestam aventureiros”.

Pondo em marcha um sentido de unidade, a coletânea parte de uma busca e termina num gesto resignado de quem já não consegue chegar a lugar nenhum. O asfalto pavimentado por Dênisson serve para se lançar ao mundo, mas também para se encontrar com o próprio fracasso. Nem todas as estradas apontam um destino. Há também aquelas feitas para se perder, para, como escreveu Graciliano, ficar preso nelas.

Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês e o espanhol. Participa da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.

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