Dedos de Prosa II

 Jorge Mendes

 

Foto: María Tudela

 

SOBRE OS OMBROS DO VENTO VELOZ QUE ME LEVA

 

ontologia voraz

 

o tempo tem dentes afiados e come pelas bordas. você não percebe o estrago, a erosão abrindo buracos escuros no peito e pratica esportes monocromáticos, se socializa com os vermes, decora as senhas. segue o esquema. o tempo é um bom cão de caça e se alimenta de sombras e psicopatologias. você sente calafrios, flutua entre nuvens desidratas, faz pactos com a insolvência, é seduzido pelos que sabem manipular o gelo. o tempo tem os olhos de vidro que embaçam e hipnotizam e você não está vivo nem morto e ninguém dá a mínima. o tempo sofre do vício em adrenalina e vertigens. o tempo sussurra em seus ouvidos o primeiro nome do inimigo e engatilha a pistola nos seus tímpanos. o tempo está parado na esquina vendendo relógios, negociando destroços e doenças de pele. o tempo acumula rancores e vaidades em caixinhas espelhadas. o tempo entra no mormaço, trava o coração. o tempo tem as pontas dos dedos geladas e um manto negro sobre os ombros. o tempo vai domesticar todos os sonhos, corromper a natureza dos pássaros. o tempo é o outro, todos os outros.

 

 

 

***

 

 

 

sitiado

 

cercado por bichinhos de estimação, orquídeas rancorosas e teorias motivacionais. cercado por perfis megalomaníacos, necrológicos recreativos e hinos de louvor. cercado por incensos e britadeiras. cercado pelo bizarro, por imagens da destruição e helicópteros. cercado pelos cães da polícia militar, gerentes do tráfico e garotas anoréticas que me monitoram pelo google. cercado por flores de perfumes degradantes, por pássaros autistas, gatos obesos e crianças em tons de cinza. cercado por energéticos, depressivos, anticorrosivos. cercado pelas vozes dos alto-falantes, por fogos de artifício, pelos gritos e tiros de ar-15. cercado pelo mormaço, pelo frio calor. cercado por corpos e objetos que provocam dor e fazem sangrar. cercado por máscaras, próteses, luvas de borracha, gadgets e metáforas da carnificina. cercado por deuses de plástico e caixas de supermercado. cercado por passeatas e paredes, orixás, gases lacrimogêneos e erva daninha. cercado pelo invisível horror e por todo o lixo que existe ao meu redor.

 

 

 

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necrosociety

 

é preciso acalmar o medo com voos panorâmicos no elevador de vidro, próteses sensoriais, tabletes, ansiolíticos. é preciso acalmar o medo levantando peso, clareando os dentes, eliminando gordura. é preciso acalmar o medo com mantras, mentiras, hinos de louvor, esgoto, efusões de ervas mágicas, gadgets. é preciso acalmar o medo bebendo do veneno incandescente. é preciso acalmar o medo no comércio dos corpos, na sala escura com aparelhos de tv, indo dançar com os trapaceiros. é preciso acalmar o medo negociando com os deuses e os demônios da dissimulação, com doses cavalares de tédio e tinturas para o rosto. é preciso acalmar o medo com alvejantes, sucos de clorofila, recebendo propinas e espíritos da maledicência. é preciso acalmar o medo com barbitúricos líricos, falcatruas, câmeras de segurança, estelionato. é preciso acalmar o medo molhando de sangue, suborno e miséria as mãos dos homens públicos. é preciso acalmar o medo ficando rígido e desidratado. é preciso acalmar o medo como fazem os cadáveres.

 

 

 

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addiction blues

 

ela diz que sou feio, confuso e indiferente à luz do sol e tenta me prender dentro do cubo de gelo. ela simula caridade e ataques cardíacos pra que eu entre em transe e frite na fervura. em seu planetinha corrosivo existem plantas carnívoras, tempestades elétricas, cocaína. ela corrompe minha natureza de pássaro, me passa malária e os barbitúricos. ela se finge de morta e eu só no conhaque. ela lê o que escrevo sentada só de calcinha na mesa da cozinha e diz que não tem tempo nem paciência prus meus paradoxos e viagens suicidas ao redor do fogo. ela ri do meu medo, me aprisiona em espelhos que são frios frios frios. ela me leva pru fundo do mar e me deixa anêmico, aflito, incomunicável. ela tem um jeito de mexer nos cabelos curtos que desestabiliza as sólidas estruturas. ela me olha de longe, sem piscar, e ainda dói. ela me beija com desespero e ternura, ela me ama com tigres e punhais, ela corrói meu voo de ícaro, apaga meus passos, me abandona em labirintos, acende meu desejo, morde meus mamilos e é por isso que eu bebo.

 

 

 

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ininteligível       

 

existe algo de sublime e sujo no amor. algo que faz o assoalho tremer e que incomoda a vizinhança. existe algo no amor que fura a pele e deixa rastros de sangue pelo chão da cozinha. existe algo no amor que provoca febres, corrosões, desmoronamentos. existe algo no amor que embriaga os pássaros e nos faz dançar violentos e descontrolados ao redor da fogueira. existe algo no amor que é doce, ácido, incandescente. existe algo no amor que alucina, causa sonambulismo, desafia a gravidade e faz voar. existe algo no amor que provoca espasmos, psicoses, infecções e ainda goza. existe algo no amor que cavalga os ventos, arranha a carne e as paredes, corta os cabelos bem curtos, abre oceanos e produz cegueira e uma severa forma de dor. existe algo no amor que não tem cura, que é loucura, perversidade e canibalismo. existe algo no amor que dispensa explicação.

 

 

 

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chroma key

 

um romance parecido com filme super 8 e rastros de fogo. um romance com hálito de vodca, com formigas correndo na corrente sanguínea, pista magnética e flores carnívoras. um romance que solte as mãos na curva fechada, que abra asas quando pular do décimo segundo andar. um romance atravessado na calçada atrapalhando os pedestres. um romance sem dia seguinte, com olheiras fundas e olhar obstinado. um romance volátil que levite sobre os incêndios. um romance com os cabelos molhados pela tempestade, que solte faíscas e choque elétrico a cada beijo. um romance inesperado, sem ponto final, que comece pelo fim, que encante meu corpo e me faça dançar o blues.

 

 

 

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sobre os ombros do vento veloz que me leva

 

talvez não haja tempo nem paciência pra esperar pelo sol. preciso acender fogueiras e deixar o fogo se alastrar. a garota linda me ama e me odeia e mora longe numa casa cheia de gatinhos psicóticos. eu encaro paredes, minto pru chefe e pru sub-chefe e de noite viro dragão da lua e faço sobrevoos. existe dor nas coisas que toco com a ponta dos dedos, pessoas insalubres no fim do arco-íris, dissonâncias e tempestades que não me deixam mentir. sigo só de encontro ao inimigo. por livre e espontânea vontade caio em todas as armadilhas. sou fraco para os cálculos. talvez não haja amor, doses de conhaque, neblina e manhã seguinte. preciso ir.

 

 

 

***

 

 

 

devir

 

para o medo da morte doses cavalares de adrenalina e nuvens. para o desejo que arde fogo alto, brasa viva, solstício. para o beijo outro beijo outro beijo outro beijo. para o sangue que corre pelas veias oxigênio e matilha. para os olhos andrômedas, luas de virgem, calafrios. para o passado, o presente e o futuro as águas dos rios, a dura luz do dia. para todas as coisas que existem e para as que estão por vir o fundo do mar, a matemática do sol, a pureza do sal e o que escrevo aqui sozinho.

 

Jorge Mendes é formado em história, “quase” pós-graduado em teoria da comunicação pela eca-usp (abandonou o mestrado pra viajar por aí), avesso a qualquer tipo de glamour, leitor voraz de brautigan, amante do vinho e da cachaça, pede pouco e recebe na cara e nunca tem ninguém por perto quando bate a vontade de cortar os pulsos.

 

 

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4 Comentários

  1. esse Jorge sempre me pareceu incandescente, cheio de gatilhos, distante do próprio sorriso quando (d)escreve. ainda somos da tribo esquecida das minúsculas. aliciamos parágrafos e seguimos sem fado, o destino que nos mantém acesos, ácidos, velozes, parados. essa revista me desperta. valei-me, leveiros!

  2. valeu diana

  3. Ok jorge você venceu. por entre as palavras, caminhei perguntando-lhes o que se ouvia quando outrora existiam as maiúsculas, era preciso matar por fora ou o que está morto por dentro. fez bem em proclamar a falência, reconhecendo que não está à altura delas. essa fragilidade, essa dispersão é o retrato do homem hoje, e sua teleobjetiva é de alto calibre. aqui se recobra a fé!

  4. beleza jose

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