Dedos de Prosa I

A vírgula

Lizziane Negromonte Azevedo

 

Ilustração: Mario Baratta

 

Depois de três meses desempregado, o que me apareceu foi uma vaga na livraria da Praça 1817. Eu nunca gostei muito dessa coisa de livro, leitura… mas, diante de uma carteira vazia, era minha única opção. Foi lá que descobri que era… Atchim, atchim, atchim… alérgico à poeira. Mas, não precisa se preocupar comigo não, já descobri um remédio que é tiro e queda. O nome dele? Cetirizine. Você conhece? É ótimo, um santo remédio. Aqui, meu trabalho é tirar a poeira dos livros, levá-los do estoque para a loja e organizá-los nas prateleiras. Depois, é só esperar que cheguem os clientes.

– Moço, o senhor tem o livro do Valter Hugo… Caramba, esqueci o nome do homem! Você poderia consultar no sistema se existe algum autor com esse nome?

É sempre assim, quando consigo engatar uma conversa legal com alguém aparece uma criatura dessas, que não sabe o nome do livro, muito menos o do autor. Dá vontade de matar uma pessoa dessas. Sei não, viu! Só um minutinho que eu já volto para continuarmos conversando.

– Pois não, senhor. Só um instante.

Ora, pois não, pois não… Eu só falo isso porque fui ensinado, mas a vontade que dá é mandar um cliente desses para aquele lugar. Ora, onde já se viu chegar a uma livraria sem saber absolutamente nada do livro que procura! Só se eu fosse um adivinho, daqueles com bola de cristal e tudo, pra acertar o livro que a pessoa mais perdida que ele procura.

– Não, infelizmente não temos nenhum autor cadastrado com esse nome.

– Mas, você não sabe dizer se chegará algum livro desse Valter Hugo?

– Infelizmente não, pois os pedidos deste mês ainda não foram feitos.

Quando não trabalhamos em uma livraria achamos que as pessoas que vão até lá são pessoas objetivas, que chegam sabendo o que querem. No entanto, olha aí esse carinha pra comprovar que as coisas não são bem assim.

Mas, continuando nossa conversa, aqui é sempre muito calmo. Ficamos sempre a esperar que o cliente nos aborde fazendo algum questionamento sobre o livro, o autor, o preço, essas coisas. Eu evito chegar junto ao cliente assim que ele entra na loja. Não quero parecer com aqueles vendedores de sapato chatos que, mal entramos na loja, já nos mostram sapatos ou sandálias que jamais compraríamos, mas, que para eles: “olhe só que coisa mais linda!”. Não, isso não! Prefiro aquele atendimento de loja chique lá do shopping da granfinada, que o vendedor apenas observa quem entra e, ao perceber alguma dúvida ou ao ser chamado, aparece perto do cliente para atendê-lo. Tem gente que acha que vendedor assim é vendedor esnobe, que atende com simpatia dependendo da cara de riqueza do cliente. Eu não penso assim, não. Acho até melhor esse tipo de atendimento, sem pressão.

– Moço, o senhor sabe dizer se tem o livro “O fio das missangas”, de Mia Couto?

– Deixe-me ver, só um minuto. Sim, temos sim. Irá levá-lo?

– Ah, que bom! Já procurei demais por este livro. Onde é o caixa?

– É só ir em frente. Muito obrigado!

A rotina aqui é essa, meu amigo. E, numa loja como esta, num país como o nosso, onde poucos lêem, a começar por mim mesmo, não vemos muitas pessoas por aqui. Agora, dá um pulinho na loja de sapatos da esquina pra você ver a diferença. Está apinhada de gente essa hora. Bom pra mim, só assim não tenho que ficar o tempo todo atrás de um e de outro pra atender. Sei que, nessa brincadeira, eu já estou trabalhando aqui na loja da dona Amália há umas oito semanas.

Logo nos primeiros quinze dias de trabalho – que, diga-se de passagem, foram semanas muito nubladas e chuvosas – apareceu aqui na loja um cliente muito diferente. Ele é magro, tem uma barba branca e longa. Parece um árabe. Mas, quero logo deixar claro que não tenho nada contra esse povo. É que não é muito comum por aqui pessoas com a feição como a daquele cliente. Mas, além de tudo isso, ele tem outra peculiaridade muito engraçada, apesar de trágica. Ele carrega o peso morto de uma das pernas com uma muleta. Por que é engraçado? Claro que não é a circunstância em si da perna morta, mas o fato de que ela parecia querer entrar na outra perna, assemelhando-se a uma vírgula. Sim, com o detalhe de que ela estava coberta com gesso, como para esconder sua própria deformidade.

Quando ele chega à loja, taciturno e com o semblante fechado, anda entre as estantes de livros, não sem alguma dificuldade – outra vez ele bateu a muleta num monte de livros que eu havia organizado um minuto antes na forma de espiral e derrubou todos eles – escolhe um livro e lê cada linha dele em voz alta, como que para uma platéia invisível, que observa atentamente cada sílaba, ponto e vírgula pronunciados. Como ele fica muito tempo no mesmo lugar, lendo o livro sempre em voz alta, nunca sei exatamente o quanto do livro ele consegue ler. Se não o lê todo, chega bem pertinho. Isso eu tenho certeza. Eu nunca o vi acompanhado por quem quer que seja, pai, mãe, irmão, esposa ou filho. É sempre sozinho que chega aqui na loja. O mais interessante é que antes dele aparecer por aqui eu nunca o tinha visto por essas bandas da Praça 1817. É claro que passa muita gente nessa rua, mas, quando você vem trabalhar todos os dias, você começa a ver que são quase sempre as mesmas pessoas que circulam por aqui.

Semana após semana ele vem à livraria e repete seu ritual, sempre às três horas da tarde, nem antes nem depois desse horário. No início, eu fiquei muito curioso para saber quem era aquela figura tão inusitada. Enquanto ele permanecia na loja, a cada minuto eu desejava que ele me chamasse para fazer uma pergunta que fosse, só para eu tentar ao menos descobrir o nome dele e de onde ele era. Mas, confesso que até hoje não consegui descobrir nada disso.

– Alberto, deixa de conversa com esse aí e vai atender o cliente ali!

Alberto, Alberto… Eu já disse para dona Amália que podia me chamar de Beto mesmo; todo mundo me chama assim desde a minha infância, tanto que às vezes até esqueço que me chamo Alberto. Eu já nem sei mais o que fazer para dona Amália me chamar de Beto, mas não vou mais ligar pra isso não, afinal, meu nome não é mesmo Alberto? Então!?

– Pois não, senhor! Posso ajudá-lo?

Como eu vinha nessa divagação sem futuro sobre meu nome, se era Alberto, Beto, essa coisa toda, nem me dei conta de quem era o cliente que dona Amália mandara atender. Pois não era o carinha da perna morta de quem eu estava falando! Meu susto foi tão grande que quase gaguejei ao perguntar o nome dele. Acho até que ele pensou que eu era gago de verdade. Mas a surpresa foi ainda maior quando ele respondeu que o nome dele era Alberto. Ele era meu xará! Você acredita nisso? Fiquei tão desnorteado que minha reação foi sair dali o mais rápido possível; o que fiz assim que ele respondeu à minha pergunta:

– Não, obrigado.

Saí dali direto para a sala da dona Amália, para contar-lhe o pouco que eu sabia da rotina do homem aqui na loja.

– Dona Amália, aquele cliente que a senhora pediu que eu atendesse vem aqui na loja toda semana, religiosamente. Ele lê alguns livros em voz alta e depois vai embora. Nunca apareceu aqui acompanhado.

– Será que ele não está observando o movimento da loja para nos assaltar, Alberto? Sei lá, hoje em dia está tudo tão perigoso. Morro de medo de assalto.

– Onde é que um homem desses, com todo respeito, tem condições de assaltar alguém, dona Amália?

Dona Amália é daquelas empresárias que vivem soltando fogo pelas ventas, manda aqui e acolá, dá grito em gente e tudo mais. No entanto, é só falar em assalto que ela fica mansinha, mansinha. Ela é muito nervosa com essa coisa de assalto, faz de um tudo para ter segurança aqui na loja. Já instalou câmeras de vigilância dentro e fora da loja e, além disso, contratou um segurança que passa vez ou outra aqui em frente para conferir se está tudo em ordem.

– Alberto, desde quando esse homem vem aqui na livraria, que eu nunca o vi por aqui?

– Já faz algumas semanas, dona Amália. A senhora nunca o viu porque ele só vem aqui às três horas da tarde e a senhora raramente está aqui nesse horário. Mas, não se preocupe não, dona Amália, ele parece ser totalmente inofensivo. A senhora não vê que ele mal consegue andar direito carregando aquela perna?

Ela não respondeu. Ficou na sala com uma cara de espanto, meditando sobre nossa conversa. E eu voltei para o salão de vendas, também refletindo, mas, não sobre a mesma coisa, e, sim, no meu encontro estabanado com o meu xará. Depois desse incidente, nunca mais falei com ele, pois ele nunca deu brecha para maiores diálogos. E assim os dias foram passando, as horas se somando e ele sempre a nos visitar, com dona Amália já sem ter medo do pobre. Eu tinha pena dele, solitário a entrar e sair de estórias, como se quisesse ser uma delas; com aquela perna morta, em crise por ser membro, querendo ser vírgula e eternizar-se, emaranhando-se nas linhas e parágrafos daquelas fantasias,

 

(Leitora assídua, desde a adolescência, Lizziane Negromonte Azevedo, monteirense de criação e coração, é advogada, cofundadora e coeditora da Boca Escancarada: Revista de Literatura e Arte. Possui diversos contos publicados pela Câmara Brasileira do Jovem Escritor, pelo Correio das Artes – Suplemento Literário do Jornal A União, do Estado da Paraíba – e pela Revista Boca Escancarada)

 

 

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1 comentário

  1. Um conto leve, ligeiro, com sabor de cronica do cotidiano, gostoso de ler, deixando aquele gostinho de quero mais…

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