Dedos de Prosa I

Márcia Denser

 

Foto: Pedro Alles

Foto: Pedro Alles

 

Horizontes

 

porque sou eu quem vai ao encontro do destino que mora – e continuará morando, esperando – no Paraíso. Mas eu fui e voltei. Eu fui ontem e seriam 23:58 nos relógios da Paulista, 23:55 no farol da Casa Branca com Peixoto Gomide, porra, deviam estar andando ao contrário, contando o tempo que perdi ou já passou e então devo estar um bocado atrasada para desmanchar esse cirquinho que já se armou antes, muito antes que os relógios da Paulista começassem a contagem regressiva apontando o sentido desse passeio noturno à tua casa, Marcos, desse desvio, porque sou eu quem vai ao encontro do que praticamente já rodou, o tal cirquinho que se armou com unhas e dentes, embora você me recebesse como se já esperasse, você também tem um faro de perdigueiro, meu chapa, I know, I know, você comendo e falando sem pausa para respirar, me deixar falar aquilo que eu vim para te dizer, que não somos nós, não há nada conosco, ok, não precisa embarcar no meu sonho, você não tem que se arrebentar junto, você não precisa sofrer, eu tentando falar e já sentindo piedade daquilo que falava ou tentava falar e também daquilo que comia e não ouvia, repetindo de orelhada o que alguém te orelhou, ora se esse não é o gancho perfeito para o teu melodrama espanhol: uma mulher ansiosa por volta da meia-noite passando nesse teu apartamento que tem um vaso com uma arvorezinha seca com uma bandeirinha vermelha plantada na terra seca escrito Benvindo a Parati     e observando esse teu apartamento tão pequeno, tão 21º andar, tão bloco C, caixinha de fósforos pairando no oceano cleptomaníaco dessa Cidade que não é para quem não pode conquistá-la com unhas e dentes, de maneira que então fica aí como quem comprou uma vitrine de doces para ficar do lado de fora, o nariz contra as luzes refletidas lá embaixo e isto, Marcos, isto        me deixa tão triste, benvindo, welcome, mas você sem essa de welcome contudo botando filhodaputamente uns cds com aquelas músicas tristes e úmidas e burras e relembrando (reminds) aquela noite em que você  botou os mesmos CDs úmidos e burros e tão Philip Glass, percebe como a armação desse teu cirquinho é maluca? Roda, gira, sofrendo antecipadamente de saudades da mulher que você vai mandar embora eu esteja na tua frente e de touca, da mulher que você ama desesperadamente e sofrendo na minha frente, como se eu já não estivesse mais ao alcance do teu abraço, dessa mulher que precisa beber para trepar, foi o que você disse rapidamente desviando o rosto e já se sentindo como um vômito, mas eu ainda estava de touca e inocente e parada na sua, só que você já tinha dado o pira, a alma e o coração em Parati, enquanto eu tirava a roupa, deitava ao lado de você que já dormia tão distante, lá longe em Parati, virado para o canto. Como antes. Como sempre. Como toda noite até amanhecer. Daí eu levantei e me vesti e disse sim, você fez o possível, amor meu, só que eu não programei não engendrei nada disso, foram os relógios da Paulista que marcavam o tempo ao contrário, estavam andando de costas, como se não se importassem para onde iam e sim onde estiveram, então encontrei aqui o cirquinho armado para amanhã, de forma que flagrei o destino 24 horas antes: estava marcado para esta noite, eu na frente do tempo. Sim, Marcos, muitos problemas, meus e teus, individualmente, não nossos, claro, claríssimo. Mas os problemas são como velhos aquecedores: funcionam muito bem até o dia em que explodem na tua cara. Tique-taque, tique-taque, tudo ia tão bem, tique-taque, tique-taque. E ele, você não arruma nada, não tem estrutura, joga tudo pela casa, você não tem modos e eu, calada, e ele, você não tem grana, você só tem pose, e eu, enumere, vamos enumere, se não você cai, então diz, porque não diz logo na minha cara, e ele, misterioso, não antes dessa noite, e eu, mas acontece que meu coração também está marcado para esta noite. Estava, quero dizer. E ele, você não tem outra coisa na cabeça, garota? Não, não tenho saco, é isso. E fui descendo, os olhos mareados, porque eu não posso, porque eu não devo, não quero, não preciso, porque meu coração não está marcado para hora nenhuma, meu coração a ti pertence e às nove da manhã fiz sinal para o Vila Madalena, subi e então vi aquela muralha de corpos e bancos na minha frente.

                     Como um horizonte de marcos.

………………………………….  Ou cruzes.

 

A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), A ponte das estrelas (Best-Seller, 1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II – obra escolhida (Record, 2008). É traduzida em nove países e em dez línguas. Dois de seus contos – “O vampiro da Alameda Casabranca” e “Hell’s Angel“ – foram incluídos nos Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, sendo que “Hell’s Angel“ está também entre os Cem melhores contos eróticos universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista. Foi curadora de literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.

 

 

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1 comentário

  1. Mais um belo conto. Dramático, sim, mas sem perder o encanto da palavra bem achada.
    Maria Lindgren

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