Marcus Vinícius Rodrigues
UMA CONVERSA DE BANHEIRO
— Eu tenho fita dupla face aqui. Quer?
Antes de falar, a mulher afastou a escovinha do rosto. Retocava o volume dos cílios com uma máscara preta. Eriçava-os para cima enquanto o olhar verde observava a moça que, há pouco, tinha entrado no banheiro. Ela tentava manter os seios dentro de um decote vermelho que insistia em mostrar demais.
— Você anda com fita na bolsa?
A moça lhe dirigiu os olhos castanhos muito brilhantes e esperançosos. Eram olhos juvenis contornados por uma maquiagem alegre.
A mulher enfiou a escovinha no frasco e o deixou em cima da pia. Vasculhou a bolsa de pedrarias pretas, que combinava com seu vestido também preto, bem fechado na frente e com um longo decote nas costas, até a cintura. Costas nuas.
— Já me vi em cada situação. Tenho linha, agulha, alfinete de segurança…
— Você é bem prevenida.
— Uma vez quase fiquei nua em um casamento, minha filha. Essas roupas são uma armadilha. Toma.
Tirou da bolsa a fita e a entregou à moça. O ar distraído. Sacou novamente a escovinha do vidro e se observou no espelho. A mão em suspenso sem saber se recomeçava a tarefa de avolumar os cílios que já estavam eriçados, negros e curvados para o alto. Daquela vistoria os olhos escorreram para a outra.
— Acho que tem de fazer uma tirinha mais fina. Deixa eu pegar uma tesourinha.
— O decote é muito aberto.
A mulher cortou um pedaço de fita e depois o dividiu ao meio.
— Tenta agora.
A moça agradeceu. Parecia atrapalhada com a operação, tentava a todo custo evitar que os seios ficassem à mostra.
— Coloca a fita mais pra dentro para manter o franzido do tecido. Ninguém nem vai notar.
Continuava olhando através do espelho e se colocou em um ângulo em que não podia mais ver a moça enquanto perguntava.
— Gostando da festa?
— Animada. Tem gente famosa.
— Ah! Sempre tem um ou outro… e muito famosinho arroz de festa. Você vai ver.
— Ai. Grudou tudo. Vou fazer outra. Você não se chateia, não, né?
— Olha… eu… a fita? Nada. Pode usar à vontade.
— Não está gostando da festa?
— Maçante. São todas iguais. Mas tem de vir, né. Quando fico entediada venho retocar a maquiagem. Adoro. Já teve vezes de eu mudar a cor da sombra no meio de uma festa… Ninguém notou. É a vida.
A frase a fez pegar o estojo de sombra. Decidida, enfiou o pincel no dourado.
— E não tem como escapar, né?
Empurrava o seio para dentro do decote enquanto falava. Parecia arrependida das escolhas que tinha feito. Os tamanhos.
— Agora é ir até o fim. Paciência. Estou acostumada a esperar as coisas acabarem. O que não é pra vida toda a gente aguenta. Noblesse oblige.
Murmurou para si mesma o noblesse oblige e descartou o dourado. Limpou o pincel e procurou uma outra cor. Decidiu-se pelo bronze fosco. Começou a retocar os olhos, que até então tinham uma maquiagem mais suave.
— Uma festa de caridade…
A mulher teve de parar a maquiagem para rir.
— Olha meu vestido. Uma festa de caridade. Ele não me avisou de nada.
— Não tem motivo para você se preocupar. Aqui…
— Quem ia imaginar uma festa de…
Voltou-se para a moça. Até então só a tinha visto pelo reflexo do espelho. O cabelo era muito loiro e liso. Alisado. O vestido era mesmo muito justo. O decote deveria ser natural com várias dobras, mas como era um número menor, faltou tecido.
— Deixa eu lhe ajudar.
Cortou novas tiras da fita e começou uma nova operação. Tinha de tocar nos seios. Não havia outro jeito.
— Não tem problema.
— E você nunca veio numa festa…
— De caridade? Nunca nem imaginei…
— Espera. Não se mexe… o bom é que é firme. Vai segurar.
— Me custou muito.
O decote se acomodou nos seios. Não corria mais para os lados.
— Tenho medo de escapar se eu me mexer muito.
— Por enquanto você não vai ter de se mexer. Vai ficar sentada… ereta… vai sorrir suavemente e esperar acabar a festa.
A moça riu.
— Obrigado. Vai ficar o final de semana?
Foi a vez da mulher rir.
— Não. Domingo de manhã tem culto.
A risada da moça congelou num espanto. A mulher se voltou para o espelho. Não se decidia a retornar para a maquiagem.
— O fim de semana inteiro, né?
A moça já não ria. Jogava os restos de fita na lixeira.
— Você é mesmo muito prevenida. Tenho de aprender essas coisas.
A mulher guardou a fita e a tesourinha na bolsa e tirou de lá um estojo pequeno. Dois comprimidos surgiram em sua mão. Um azul e outro branco.
— Toma.
A jovem recebeu os comprimidos em sua mão pela inércia da surpresa.
— O que é isso? Eu não curto…
— Eu vi você mais cedo. Acho que vai precisar. Não é pra você.
— O azul… eu acho que não vai precisar.
— Pelo que eu vi, vai. Amassa e coloca na bebida. Funciona bem.
— Mas não é perigoso?
— Pra você, não.
A moça olhava para os comprimidos sem saber o que fazer. Estava presa em um momento em que a compreensão de algum mistério está prestes a se relevar. Aquele momento em que se tira a venda e a luz da visão primeiro cega antes de deixar aparecer a paisagem. Ela estendia a mão como uma pergunta.
— Com o outro você faz a mesma coisa. Amassa e coloca na bebida. Esse é pro caso de você correr perigo.
Os comprimidos foram postos na minúscula bolsa prateada. A jovem tinha, agora, os olhos mortiços, olhos que enxergavam melhor.
— Obrigado. Não vem para a festa?
— Vou depois.
A moça saiu do banheiro e a mulher retomou a sua maquiagem. Decidiu-se novamente pelo dourado e o passou com generosidade furiosa. Tudo se iluminou em torno de seus olhos muito verdes e muito escuros.
ESCREVENDO UM CONTO
As primeiras frases deste conto surgiram-me durante uma entrevista que dei a Suênio Campos de Lucena, em junho de 2019. A entrevista ainda está inédita. No meio de uma longa resposta sobre meu processo criativo, eu disse:
“Ou mais: que tal pensar outros contos que tenham como ponto de partida objetos ou produtos usados apenas por mulheres? Sutiã, salto alto, cílios postiços, a antiga anágua… já imagino uma mulher no banheiro de uma festa bem chique dizendo à outra: “Eu tenho fita dupla face aqui. Quer?” “Você anda com isso na bolsa?” “Já me vi em cada roubada. Tenho linha e agulha, alfinete de segurança… Já fiquei nua na rua, minha filha. Essas roupas sexies são uma armadilha”… acabo de escrever esse diálogo e já quero saber como foi a história de ter ficado nua. Mas interessante mesmo deve ser a outra que, certamente, tem uma roupa que está mostrando demais e talvez nem tenha se dado conta. Quem são essas mulheres?”.
Esse diálogo ficou guardado no meu computador.
Em setembro de 2020, fiz uma oficina de dramaturgia com Marcos Gomes. Um dos exercícios pedia uma cena entre dois personagens que se referisse a algo fora da cena. Voltei às duas mulheres no banheiro e fiz uma cena curta.
Agora, Fabrício Brandão me pediu mais um conto para a revista. Poderia ser qualquer conto que eu tivesse nas gavetas. Eu lhe pedi uma encomenda: um tema. Já tínhamos feito isso antes: O sabor dos anjos e A fresta foram feitos sob encomenda. Pecados capitais: gula e inveja. Desta vez, Fabrício me pediu com o tema “cidadão de bem” e sobre hipocrisia. Usei as mesmas personagens. Mudei o rumo da conversa entre elas e aí está. Talvez seja um conto ainda em processo. Não sei. Deixemos descansar, desta vez não na gaveta, mas em praça pública.
Marcus Vinícius Rodrigues nasceu em Ilhéus-Ba e mora em Salvador. Publicou, entre outros, os livros O mar que nos abraça (contos, Ed. Caramurê, 2019) Café Molotov (contos, Editora 7Letras, 2018); A eternidade da maçã (contos, Editora 7Letras, 2016) e Cada dia sobre a terra (contos, Ed. Caramurê, 2010). É membro da Academia de Letras da Bahia.
Belo!