Neuzamaria Kerner
PEQUENO CONTO DE UMA GRANDE DOR
Sofrimentos do dia a dia.
Acordou bem, mas de repente se perguntou: hoje eu vou sofrer pelo quê? – O dia me trará a resposta. No trabalho desfilavam pessoas em busca de soluções para os problemas com o fisco. Aproveitavam e contavam suas desditas. Na cabeça do moço uma luz sombreada se acendia. Eis um sofrimento para me agarrar a ele. Em seguida, a moça confusa passava mensagem exigindo atenção e cobrando promessas acumuladas. Se colava ao coração mais um sofrer. Ia para o banheiro e vertia água desde os olhos no vaso branco que recebe todas as águas e mais. O moço sofria num gozo estranho as dores que vinham de fora. Não era bom, mas sofria neste prazer. Mais um atendimento e ouvia a mais um derrame de infelicidades que aderiam ao seu peito, muro de lamentações diárias. O moço mal dava conta do próprio muro e desabava em mais sofrimentos. O que mais tenho hoje para sofrer? Mal acabou de pensar, veio um telefonema sobre uma separação matrimonial na família. Culpas pra lá e pra cá vindas das partes envolvidas. Um nó na garganta crescia como na dos condenados no minuto cadafalso. Que pena deles e de mim que somos seres imerecidos de tanta dor!
Em casa, já se pensando longe dos sofreres alheios, um pássaro preso na gaiola vizinha lhe canta a canção de ninar dos viciados em dor.
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CEGO POR QUERER
Numa aldeia qualquer na beira de um rio qualquer neste mundão de meu Deus uma criança nasceu cega e assim permaneceu até que, já na adultidade, um médico se compadeu e com mãos hábeis e instrumentos adiantados deu-lhe a visão. Que alegria! Pela primeira vez viu a cor do caqui, os ranhos transparentes na sua polpa. Antes só lhe sabia a maciez e a doçura do mel quando em sua boca deslizavam pela língua e descia para o destino. Viu o matizado de cada flor. Viu como eram as patinhas do seu gato que arranhavam carinhosamente as pernas quando pedia o ninho do colo. Os passarinhos… Ah!… Esses eram a delícia no novo paraíso de ver. Explorava-o com prazer.
A sua aldeia se banhava noite e dia no rio que, como um sino de bronze, anunciava as horas da vida o tempo inteiro. Um dia, se distanciando a poucos metros do seu chão, viu um passante chutar um cachorro que salivava por um pedaço de carne. No mesmo dia viu um homem com a brutalidade dos monstros subjugando uma quase mulher, em seguida matando-a para silenciar seus gritos denunciantes. No mesmo dia, já assombrado com o que via, um homem incendiou o outro que dormia numa calçada. Antes do cair da noite, viu barracos caindo em barrancos, rios envenenados, matas gritando em quedas, bocas de gente babando fomes, almas alienadas, zumbis nas cracolândias, dores-choros-rangendo dentes…
Voltou, apanhou trapos grossos e pretíssimos e fez tufos para ou ouvidos e vendas para os olhos serventes. Num tamborete sentou-se em silêncio com uma bengala ao lado, caso precisasse se defender do que os olhos cansados pudessem ver, sentir e sofrer.
O sol deu uma risada ardente e cínica. A lua derramou duas lágrimas conformadas.
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O LUGAR DAS MÁSCARAS
Olhe, moça, eu já estive neste lugar. Olhe, eu sei o que você sente. Não sei dos seus motivos, mas sei dos caminhos que você trilhou para chegar onde está agora.
Sabe, quando eu conseguia acordar, abria o armário e escolhia a máscara do dia. Colava-a na minha cara e ficava protegido. Às vezes, no meio do dia, eu tinha que voltar correndo para casa porque a máscara que estava usando não mais servia: começava a se derreter com o suor das emoções e tinha que ser substituída mais urgentemente do que todas as urgências do mundo. Se a máscara se despregasse de mim, eu seria visto. O que faria, então? Ficar nu dentro da vida, na vista dos outros, seria o inferno pegando mais fogo ainda.
Sei onde você está, moça. Creia!
Como eu não podia levar o armário das máscaras nas costas comprei um baú preto, bem chaveado, e o carregava no lombo, rua acima, rua abaixo.
Diziam: – lá vai ele! -. Sim, lá vou eu com o baú nos ombros. E todos completavam: – Oh! – e eu me doía mais e dizia ai… Aonde eu ia levava meu companheiro indesgrudável. Já estava acostumado e parece até que me dava certo prazer. Pesava menos. A gente se acostuma com tudo. De bom e de ruim. Até com a dor que enfeia a gente acha bom.
Olhe, moça, ouça bem o que não me canso de repetir: já estive neste lugar e resolvi desmatar o mundo para encontrar um caminho de volta para um outro onde já estive também.
Encontrei uns anjos pela estrada e, no início do retorno, chutei-os. Eu precisava dessa companhia, mas lutei contra. Não sei explicar. Eles, teimosos, ficaram grudados. Me ensinaram que a vida é sempre o aprendizado pela estrada de volta… Reaprender a função das asas não é lá coisa muito fácil. Não é não. Mas a gente é novo e sempre pode ter tempo de escolher.
Há muito chão para caminhar. Há muito espaço para voar. Há muito tempo ainda… Talvez.
Não sei, moça, se você entende o que falo e digo.
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O SOLDADO, O POETA, OUTROS E EU
Todo vestido em roupa macia passava o soldado e me olhava de longe. Todos os dias fazia o mesmo percurso entre o quartel e o meu portão. Demorou pra eu saber que falava. Que voz de trovão virou pontual os meus ouvidos, quando entardecia. Forte, mas não amedrontava. Durante três dias, como reza de promessa, parou diante de minhas ânsias e lábios duros tocaram nos meus. Até hoje não sei se gostei, mas de uma forma que não sei explicar, senti segurança. Num destes amanheceres ele abriu meu portão, pediu emprestados meus pequenos pés e os pôs sobre seus coturnos lustrosos e andou uns dez passos sem me deixar pisar no chão. Gostei daquele novo chão sobre o qual nunca havia caminhado antes. Numa noite, chegou vestido de guerra, tocou meu corpo vestido de alma, trançou meus cabelos com estranha habilidade de força e me fez prometer que aguardaria a sua volta para o destrançamento. Eu quis dizer sim com um beijo na sua testa sempre guardada por um capacete. Nossas alturas eram incompatíveis. Ele alto como um poste de luz. Eu pequena como… O fato é que ele não se curvou para receber meu respeitoso beijo. Meu coração travou naquele momento. Muitas guerras ele travaria, porém sem mim. Decisão aprontada e apontada para o futuro.
Aí apareceu o poeta, suave como um passarinho. Cantava no galho junto ao meu portão. Às seis da manhã começava o ritual de encantamento, incluindo o destrançamento dos meus cabelos, fio por fio, salpicando pequenas pétalas de flores sobre a minha sagrada cabeça – como costumava dizer. Na verdade, a sua pontualidade era feita de acordo com o seu pensar, pois 6 horas da manhã, na cabeça dele, era qualquer hora do dia. Em todas as horas o dia estava sempre nascendo somente para a minha alegria, por isso o seu descontrole não me incomodava. Já me derramava de amores e ânsias. Seus presentes inusitados eram a minha glória. Sua ausência era a minha incompletude. Ele dizia que meus olhos eram o mar transparente onde ele nadava despido; dizia que o fio do meu cabelo era o raio mais brilhante do centro da lua e, como se fosse real o que dizia, depositava esse fio na palma da própria mão e admirava como se um tesouro supremo fosse; em outros dias, depois de sumiços ao dobrar a esquina, chegava esfuziante e me punha no pescoço um pedaço de brisa. Oh, como eu sentia! Um outro presente demorou sete dias pra trazer. Ao chegar me disse que havia ido ao deserto encomendar um xale de areias e que ele próprio tecera com as mulheres das tendas de um oásis. Ele sumiu por sete dias até retornar coberto de saudades. Enquanto cobria-me os ombros com o xale, ia descrevendo cores e sutilezas e fazendo trejeitos de decorador de corpos sobre a minha pele desejante de alegrias. Mas ele gostava muito era de dobrar esquinas para encontrar inspirações para seus presentes. Até que um dia me cansei de tantas esperas e inconstâncias. Não podia prendê-lo e não queria soltá-lo. Ele conhecia o meu êxtase, mas desconhecia a força que morava em mim. Cortei o galho da árvore do meu portão onde acontecia o ritual da sua magia. Quebrei o joelho da esquina. Nada adiantou. O mago havia me enfeitiçado. Recolhi os retalhos das lembranças, guardei os versos e gestos no meu coração e segui sem mar nos olhos, sem fios de luz de lua, sem olhar para outras esquinas onde a qualquer momento ele pode dobrar.
Outros me chamaram a atenção, mas não quiseram construir histórias dentro de mim: Azuis, brancos, pretos, índios, verdes, amarelos, representados por letras, cegos e estropiados, embora não tenham deixado marcas profundas e não tenham morrido no esquecimento. Tempos depois, mal eu me havia recuperado do soldado e do poeta, chegou um verdureiro. Meu Deus, que mãos calosas e unhas de arar a terra! Matava minhas fomes como se fosse a ambrosia dos deuses espelhada nos galhos de acácia amarela. Entendia o Olimpo – assim como me pareceu – como ninguém e me tornava imortal. Emprenhou-me com o branco maná produzido nos seus chãos com gosto de pão e mel. Caí de paixão pelas mãos grossas e sua fortaleza no olhar. Caí de paixão pelas suas descrições pelos tempos de cada semente sufocada na cova de cada dia.
Fui com ele para os longes das terras verdes. Lá conheci o que havia no disfarce de suas mãos bem como o diabo mais fogoso que havia no mais profundo do inferno ardente. Estive no centro do vulcão. Lá aprendi a solidão. No leito o procurava nas madrugadas e nada. Vivi o esquecimento das maltratadas. Eu era a sua terra e sofria com o rastelo, a enxada, a foice, o podão. Ele gostava do cheiro do rabo das cadelas e me fazia cheirar igual para as suas satisfações. Eu me desconhecia e tinha vergonha de mim. Quebrei o espelho do quarto com uma pedra para não me ver. Não podia gritar as dores para que o grito pudesse alcançar algum ouvido, tamanha era a distância entre mim e o mundo. Estava mais invisível do que sombra no fundo do rio. Ele gritava em seus gozos dentro de minha carne rasgada e minha boca tapada. Naqueles meus dias, ele me embebia o rosto com meu próprio mênstruo. Fugi mato afora. Me achou e, na corda, me trouxe de volta. Pensei em morrer, mas eu não merecia este pior. Ainda não era chegada a minha hora. Pensei: pinhão-roxo, mamona, mandioca braba, cobra coral, escorpião… Não sei se deixei pra trás um aleijão morto-vivo ou um homem morto-morto. Por sete meses fiquei num hospital que acode mulheres. Sete meses depois tive o meu nome mudado. Sete meses depois… atravessei oceanos.
Porém não posso esquecer o rei queniano que conheci no Texas e me fez cometer um poema na vez que o vi. Nem precisei saber seu nome, mas sua coroa permanece nos olhos da minha memória:
Hoje eu conheci um rei.
Estava coberto e um preto lustroso que lhe servia de pele
e sua testa sustinha uma enorme coroa
invisível para olhos desatentos.
Do seu sorriso marfim uma voz
pronunciava uma lei sem igual
por aqui.
Na sua altura trazia o Kenya inteiro
reino que deixou atrás de si.
Nunca havia visto um rei em pessoa
ancorado na proa
deste imenso cais que é a vida.
Ambos de passagem pelo mesmo porto
a despedida se fez presente
e a gente partiu se carregando em visão
de um passado que ali se encontrara.
Outros espíritos viajeiros
Se encontraram em nosso peito
E todos seguiram seus destinos.
(Austin – TX – Janeiro de 2024)
Eu continuo, buscando pacificação com a existência e resistindo bravamente todos os dias. Seja lá quem me apareça pela frente. Este Eu pode ser um novo que se apresenta diante de mim. Vamos ver o que me dirá.
Neuzamaria Kerner é poetisa, nascida em Salvador (BA). Professora, graduada em Letras e com os cursos necessários para o exercício da profissão escolhida pelo coração. Membro da Academia de Letras de Ilhéus. Membro da Academia de Cultura da Bahia. Artesã na técnica Bauernmalerei (pintura camponesa de origem alemã). Publicações: “Fragmentos de Cristal” (poemas), “Eu Bebi a Lua” (poemas), “A Presença do Mar na Prosa Grapiúna” (parceria com outros escritores)(ensaio), “O Livro-Arbítrio das Evas – dentro e fora do jardim”(poemas), “Marcas Escrevividas”(poemas), “Memórias do Silêncio”(contos). Além de publicações esparsas em revistas literárias, mantém blogs e canal no Youtube, onde posta vídeo-poemas.