Whisner Fraga
o apetite incorruptível
pegue, helena, vamos dessacralizar a militância: pessoas e interesses e planilhas orçamentárias de partidos projetadas em assembleias precisam de dinheiro, helena, armas são caras, impulsionamentos em redes sociais são caros, subornos são caros, campanhas de conscientização são caras, licitações são caras, brindes, cartazes, faixas, helena, colchões, cobertores, botas, tickets: caros, e a origem dos depósitos que darão fôlego à luta?, não se inquiete, é por uma ótima causa, helena, eu juro, apesar da corrupção, é a lida, fundamental é a abundância: o ativismo, o partido, a entidade, os desvalidos reconhecem: um dia o município ficará abarrotado de estátuas de bronze em minha homenagem e, helena, elas não são nada baratas.
***
cuidado com o embrulho na calçada
o policial ergue os braços para cumprimentar os colegas na viatura subindo a avenida: os mendigos revoam, alarmados (pessoas em situação de rua, corrigirão os militantes de coletes laranjas, que aportam, com faixas, depois de removido o corpo): depois retornam, passos miúdos, ariscos, abaixam os pesares até o contorno do amigo sob a manta térmica, a assepsia metálica blindando a indigência, ele não brindará mais a afeição que nunca lhe negou um gole nem o amor picando a veia num enlace jungido e ninguém se atreve a perguntar quem velará o companheiro, quando o levarem.
***
estratégia de dissolução
o medo atocaia os passos noturnos, que esmiúçam a fuga: os postes na rua balbuciam a claridade impetuosa: inútil clareira a realçar o breu, lá dentro, nas mansões assistindo, às vezes, a vida na rua, não aceitam a existência do medo, mas lacram as portas, os dedos sapateiam ferozmente sobre a tela do celular, propagando mentiras (esses ladrões, esses drogados, vão acabar com o bairro): o terror entra, liga a tv, senta no sofá e bebe uma cerveja, eles compreendem o preço do pânico: convencem os amigos que a desordem prevalecerá, arrancam o medo dos outros e o substituem por uma arma: em nome da justiça, dos costumes, da moral, dos bons costumes, da fé, imploram a mediação da bala: de onde virá o disparo?
***
o apetite imaculado
eles têm vontades, mas a rua não é lugar para isso, é uma indecência: quantas opiniões no whatsapp do condomínio: melhor chamar a polícia, melhor o corpo de bombeiros, melhor o padre, melhor a assistência social, outro dia ele tirou aquilo para fora e mijou em plena calçada, eu vi coisa pior, eles têm vontades, também levaram a barraca!, onde fornicarão?, cristo disse: vá e não peques, a discussão avança no grupo do edifício himalaia: outro dia o vaivém debaixo do edredom, um horror, será que usam proteção?, anticoncepcional?, a mulher sofre de convulsões, deve ser epiléptica, ela parece mais barriguda, será que engravidou?, ele fez vasectomia, ele me contou quando fui deixar uma sopa, tem uns meses, ufa, ainda bem, seria uma tragédia, como conseguiriam cuidar de uma criança?, essa pouca-vergonha em frente ao prédio, não pode, será que a prefeitura não leva os dois pra outro lugar?, em época de eleição eles costumam agir, alguém liga lá?
***
a palavra alimenta
o dorso acobertado pelo piso, as cabeças lado a lado se revezam num tremor controlado, os olhos cerrados contra o esplendor do dia, até que um homem se aproxima, pede licença, está com alguns pães com mortadela enrolados em um saco transparente, em nome de deus faz a doação, se desculpa porque é só o que pode doar hoje, mas jesus há de prover, aquele que vem a mim nunca terá fome, você certamente foi até ele e eu estou aqui para saciar sua privação, os homens se endireitam, é bom ganhar comida logo cedo, o almoço garantido, graças a um desconhecido, que pede um abraço a ambos e eles aceitam, os três se juntam neste gesto, enquanto, não longe dali, alguém grava tudo.
***
planejamento
complicado obter o documento: a identidade faz par com o título de eleitor, basta se encaminhar para a seção, a diferença é o deslocamento gratuito no domingo, o colégio a dezenove paradas, é apertar o número do candidato, o botão verde, a música confirma o voto, torce pela indicação do deputado: que cumpra o pacto de aprovar um programa e tirá-lo da mendicância!, conquistar uma suíte de hotel, a nova política possibilitaria a estabilidade, a locação de um quarto-e-sala: fantasiar uma noiva e, talvez, apresentá-la à sociedade que, finalmente, o acolherá.
Whisner Fraga nasceu em Ituiutaba, MG (1971) e atualmente reside em São Paulo, é professor universitário e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe, escreve para o coletivo “crônica do dia” e mantém o canal “acontece nos livros”, no youtube, em que resenha obras de escritores contemporâneos, é editor na sinete.