Dedos de Prosa II

Maria Lindgren

 

Ilustração: Thaís Arcangelo

 

Sol de outono em pleno verão

 

Amanheço e anoiteço com a mesma dor, todos os dias. Indefinida, parece que veio para ficar. É uma dor que qualificaria como insuportável, porque não explicada. No telefone, o doutor me recomenda um Paracetamol de quatro em quatro horas e observação.

Ah! Meu Deus! Como é difícil observar a própria dor. Primeiro, sigo os caminhos ditados pela configuração de meu corpo: começo pelo ponto mais alto: a cabeça. A dor nas têmporas, por acaso minha companheira de muitos e muitos séculos – tempo de minha vida na percepção de hoje – não aparece. O órgão responsável pelo resto todo está intacto e indolor, qual bola de futebol na prateleira, antes dos chutes. Nem os ossinhos do rosto, nem o maxilar me incomodam. Nem mesmo os lábios desprotegidos pela falta de batom. Ouvidos ouvem, olhos veem, nariz cheira, queixo se assenta na mão sem desvio. O pescoço, revelador  de tensões, sai ileso da inspeção, tanto na parte das rugas e papeiras, como na parte de trás. Tronco: tem que ser o tronco o responsável-mor do que sinto. Percorro os ombros pesados de pouca carga física, mas de muito problema, vou direto ao coração. Nada diverso do dia a dia do batecum compassado. Nem o sopro outrora acusado pelos auscultadores sensíveis. Parto para as costelas:  frágeis, mas inteiras,  até bonitinhas em seu paralelismo encurvado, que é como as vejo nas radiografias. Detenho-me nos  órgãos de comer e descomer: ultimamente, funcionam à perfeição, talvez pela marmita de remédios que engulo diariamente ou pelos pozinhos cor de poeira de deserto que a nutricionista me faz engolir, em lugar do feijão com arroz bendito. O local do xixi e das sensações sexuais….:  tudo comme il faut. Agora, faltam os membros. Os inferiores me atrapalham, sobretudo quando chego às extremidades, aos pés de pele fina e aos dedinhos, que me impedem de usar sapato fechado de salto alto e bico fino e me obrigam a ridículos saltinhos da última moda de jeune-filles en fleur. Retorno ao andar de cima, diante do espelho e constato os ombros levemente inclinados para a direita, por conta de escoliose caduca de velha. E uma vez ao espelho, sigo a olhar os braços e as mãos, sem grandes discrepâncias ou desilusões, um tanto gastos pelo tempo e ponto. Pulo para os joelhos e paro por instantes. Talvez lá encontre motivos para  a dor, como de hábito. Hoje não chiam nem fazem troc-troc os miseráveis, que atazanam as senhoras de setenta em diante. Estão santos e sanos como neném adormecido. As pernas, ou melhor, as coxas, encontro-as  musculosas, de muito exercício físico, mesmo assim, forradas da celulite a que me conformei. Nada de agudo, de diferente. Na pele, um ou outro sinal pretinho encabulado, sem importância, desses que jamais viram câncer de pele, umas poucas manchas brancas, provocadas pelas longas exposições ao sol que, uma vez instaladas, grudam para nunca mais sair, nem com os inúmeros cremes descobertos pelos cosmetólogos.

Viro de costas rápido até porque a visão não é inteira. Meio de lado, noto barriga e nádegas protuberantes:  desafiam a elegância tábua dos dias de hoje. Não gemem, entretanto. Costas ainda queimadas do sol de verão se recusam a me denunciar maus tratos. Vou desistir. Deixo a inspeção para a próxima ida ao médico generalista, uma das diversões das senhoras aposentadas de minha vizinhança, motivo para se colocar roupa mais caprichada e sair ao mundo exterior.

Decido ir à piscina azul de cada dia. Um friozinho de outono me faz crescer uns pontinhos de arrepio na pele dos braços, apesar do roupão preto e atoalhado. Continuo a passo de soldado, chego ao pleno ar livre, fonte de inspiração em todos os sentidos da palavra. Nem percebo a meia-luz do dia. Deito-me na espreguiçadeira, protegida por sundown 30 não sei para quê, ajeito a aba do boné de forma a não manchar a pele do rosto, imaculado pelo último tratamento facial.

Sinto-me pronta. Olho detidamente para a nesga de céu, doado pelos engenheiros de meu prédio. Flagro um solzinho friorento em luta vã  para furar a gigantesca nuvem cinza chumbo advinda da Gávea, sempre da Gávea. Não consigo me aquecer. Pingos de chuva iniciam seu itinerário de molhar minha toalha, meu corpo, meus cabelos, o chão. E enrugar a piscina.

Tenho que voltar para dentro de minha dor.

 

 

(Maria Lindgren é professora aposentada com Mestrado em Educação (PUC-RJ). São de sua autoria os livros “Uma Rolha na Lágrima” (2004 – Editora Mondrian/RJ) e “Habitantes de mim” (2008 – Editora MEMVAMEM/RJ). Tem textos publicados em sites e revistas eletrônicas)

 

 

 

 

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