Dedos de Prosa II

Abilio Pacheco

 

Arte: Leonardo Mathias

 

A Hora da Estrela

 

A alma era de atriz. O gesto também. E a impostação da voz!…

Qualquer dia teria sua chance. Recebeu com naturalidade o convite para um musical.

Conhecia bem seu papel e agiria com desenvoltura.

No instante exato, atirou-se da frisa.

***

 

 

Curvas Perfumadas

Para Antonia e Iskarlett

A filha era muito alta e a mãe queixava-se dos namorados que sempre a menina trazia pendurados debaixo do braço.

Sorte as curvas serem perfumadas. Mas os rapazinhos fracos não se resistiam ali; caíam.

Um dia a mãe admirou-se da filha com os francos vazios. Havia depilado as axilas.

***

 

 

Espólio

Vivia numa alegria enorme, cabendo mal em si. Havia nascido grande, perto de adulto. Seu pai-demiurgo o havia feito assim. Completo; à base de tinta em face lisa, alva e chã. Tinha amigos, nome e cor de olhos. Mais que isso, cosido e recosido, desfiado e retecido, tinha já história: plena, embora de curto enredo, intriga simples, desfecho claro. Sentia-se brioso.

E mais ainda, ao ter por certo, quando posto num cubículo escuro junto a outros parelhos seus, que dali sem tardança partiria rumo ao prelo. Ansioso sempre, de mais a mais, notava um fio de sol e a luz cegante, sentia ímpeto de… Antes, contudo, aumentado o aperto, o espaço de novo escurecia.

Às vezes, de surpresa, eram recolhidos e postos à mesa; ele ficava convicto da viagem à prensa. Eram remexidos, embaralhados, uns apartados, outros riscados, uns amassados, outros dobrados… mas ele sempre voltava à gaveta fria e bafia. Com o tempo se foi recolhendo, perdendo todo o gáudio. E mesmo quando sentiu bruscos vacilos no móvel, fado algum lhe apontou a mais remota edição.

Da escrivaninha ouvia vozes raras, portas rangentes, mastigados silêncios. Sentia-se estático e inconcluso, década a fio em meio trevoso. A face desalvecia. Seus parelhos encarunchavam, bafiavam mais. Até que, às vozes próximas, ouviu: “escritor”, “morreu”. Súbito, a luz! E de novo trevas. Desentendeu-se. Solavancaram seu casulo e saculejaram por via custosa a termo baldio. A convicção precária voltava de lenta e – sendo desfolhado de todos – sentia que, enfim, vinha a lume.

 

 

***

 

Sinfonia

 

Por conta de crescente aperto nas finanças, pouco a pouco tiveram que se desfazer dos móveis e utensílios, a começar pelos menos essenciais. Até que venderam o piano de gabinete, que ocupava espaço, mas preenchia o tempo vão com ledos solfejos e suaves sustenidos.

No lugar, puseram uma mesa sem graça de madeirite a esgarçar-se. Nela, a pianista se punha como antes. Nos mesmos horários, deslizava os dedos – com a costumaz habilidade – pela superfície de teclas imaginárias. Inclinava a cabeça, fechava os olhos, balançava o corpo, às vezes cantarolava, mas na mesa não resvalava, tocava ou triscava.

Os demais da casa mantinham a mesma rotina. Punham-se calados ao chá ou café, ao tricô ou crochê, ou apenas folgavam deveras ao som do instrumento ausente.

Não custa que logo, logo, empolgada e distraída, a moça tocou mais forte o teclado. A melodia inebriou mais ainda os presentes. As notas trouxeram não sei que contentamento. Preencheu espaços da casa e transbordou pela confusa e incrédula vizinhança.

 

 

***

 

Implícito

 

Não queria perder os sentidos do que lia, por isso sublinhava trechos mais difíceis com traços largos.

Tarde se deu conta que cobria as entrelinhas.

 

 

Abilio Pacheco é professor universitário de Literatura (UFPA – Bragança). Autor de “Em despropósito (mixórdia)” – romance e “Canto Peregrino à Jerusalém Celeste” – poemas, ambos pela LiteraCidade – 2013. Atualmente cursa Doutorado em Literatura (THL-UNICAMP) e é Assistente Editorial (da LiteraCidade).

 

 

 

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1 comentário

  1. Uma leitura escorreita, que nos embala, Abílio Pacheco. Parabéns.

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