Lisa Alves
Amnésia com Chemtrails
“Saber que resistes. Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes. Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página. Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena. “
Carta a Stalingrado – Carlos Drummond de Andrade
Eu jazia lá e o perfume da pólvora era tão banal quanto os gases poluidores de qualquer cidade grande. O local era escuro-cinza e a tonalidade aos poucos alcançou tudo de forma acelerada. A poeira de uma cidade sem luz adormecia sobre os outdoors e letreiros advertindo que ao pó tudo e todos um dia retornarão. Até o sol decidiu abandonar aquela guerra estúpida, já a espécie humana não tinha tamanho poder de decisão.
Não demorou muito tempo para eu descobrir o meu papel no meio daquelas explosões, eu era uma prostituta. Prostituída como todas as senhoras, senhores, filhas e filhos que um dia desfrutaram de uma vida digna e feliz naquele território que não recordo o nome. Apenas sei que eu completava o lugar, mas somente o lugar. Possuía uma estrangeira confiança que eu não passava de um cão sem dono, um cão sem recordações, um animal domesticado nas ruas e nos olhares famintos da população. Fome – era isso que eu sentia e por ela fazíamos qualquer negócio sujo (naquela atmosfera já não existiam negócios oferecidos em tempos de paz). Éramos a mercadoria exposta na rua, éramos a alimentação voluptuosa dos soldados. E eles exigiam variedades: senhoras, homens de qualquer faixa etária e meninas que não tiveram tempo de brincar. Ali foi constituído um campo de concentração de prazeres sádicos. “Levante seu cacete moleque!” – e o menino não tinha escolha, aquele ato poderia render-lhe uns bons restos de comida.
Tornei-me uma mulher forte, a frieza dos dias contribuiu para uma força inimaginável. Quando ouvia os três disparos que alertavam para a chegada dos consumidores, preparava-me para a labuta. Cortava os dedos e com o líquido rubro maquiava o rosto para obter uma aparência saudável. Os soldados eram exigentes, depois de deliciarem-se sobre nossos cadáveres ainda podiam negar o pagamento com argumentos incongruentes: “E ai, Raul! Alguma múmia já te calibrou antes?”.
Os dias eram fétidos, sem água, sem uma possível higiene, aos poucos a distância de um ser humano para outro foi se tornando imperativa. As doenças de pele eram as maiores oponentes dos sobreviventes. Éramos cães com uma sarna crônica e ainda assim não nos poupavam do péssimo paladar dos homens das artilharias. O verdadeiro sentido de sexo selvagem foi abrangido naquelas ruas cinzas e vermelhas. Éramos uma vitrine violada por milhares de saqueadores: nos ventres das mulheres cresciam fetos indesejáveis, nas garagens escuras homens suicidavam e eu continuava em pé. Uma múmia, não deixavam de ter razão.
Quando percebia algum indício de fraqueza escondia-me dentro das ruínas de um edifício habitado por ratos. Dali de dentro tentava táticas de recuperação, alimentava-me dos pequenos e assim seguia forte para a guerra. A primeira vez que entrei no local estava fugindo de um general mal agradecido que durante um boquete levou uma leve mordida no membro. Fiquei três dias ali, até ser esquecida ou se tivesse sorte o homem já teria seus pedaços espalhados no front – conseqüência comum da guerra, todos os dias os devoradores mudavam de cara, mas permaneciam com as mesmas intenções canibais. Naquele mesmo prédio descobri que não estava sozinha, assustadoramente deparei-me com um espectro pequeno e faminto. Dei-lhe algumas patas de ratazanas e ele as devorou rapidamente. Perguntei-lhe o seu nome “José” e quantos anos tinha “Não me lembro, dona! Tem mais carne?” Menti, disse que não, se eu dissesse sobre a fonte de alimentação, daqui alguns dias os ratos seriam uma mera reminiscência. Eu precisava viver, não sei para quem além de mim mesma, mas se a guerra terminasse poderia recuperar um pouco da memória e descobrir se em algum lugar alguém me esperava. Naqueles dias ser cruel era uma opção de sobrevivência.
Naquele mesmo prédio conseguia assistir as pessoas nas ruas, era funesto testemunhar a humilhação coletiva. Os soldados tomaram posse de todos os mantimentos doados por outros povos e utilizavam-se desse poder para por em prática as veleidades mais primitivas e maliciosas. O povo não tinha alternativa, precisavam daquela ração, necessitavam de mais um dia de vida. Mesmo que a vida fosse dentro daquela jaula de torturas. Eu também não tinha escolha, disseram que os soldados inimigos cercaram toda a redondeza e quem se aventurasse a fugir teria um pior destino. Sinceramente não sei o que é pior: levar um tiro na cabeça ou ver cada pedaço meu sendo explorado por aqueles que deveriam me resguardar. Mais tarde descobri que os jornais falaram sobre nossa situação: “Em plena guerra cidade vira bordel atrapalhando o trabalho de nossos soldados.” “Famílias vendem a inocência de suas crianças em troca de tabaco e álcool.” Provavelmente a fonte dessas informações veio de dentro do exército ou daqueles poucos cineastas (com entrada livre para o espetáculo) que vez por outra se deliciavam com as torturas sexuais. Éramos mercadoria ali dentro e lá fora o lixo execrável da humanidade. E eu continuava sem passado, ninguém me reconhecia, apenas passei a existir de uma hora para outra e fui logo me adaptando a viver como eles. Sem passado, foi mais simples permanecer.
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Línguas Estrangeiras
“(…) o uivo coletivo é a única maneira de dignificação de nossa espécie. porém (…), à diferença dos cães, que gemem em espaço aberto, para a lua, o nosso uivo deve ser confinado, para que, amplificado pela engenhosa arquitetura das catedrais, ultrapasse nosso satélite natural e atinja o centro da galáxia, redimindo-nos aos olhos do criador, que infelizmente é surdo-mudo e não compreende sequer a linguagem de sinais.”
Campos de Carvalho
Nós imploramos paciência, senhor mediador – precisamos aparecer nos papéis, no canto da massa e nas cartilhas da igreja e do legislativo. Carecemos compor notas inaudíveis através dessa sua imagem apagada, através dessa sua cabeça caduca e de suas mãos (já não tão suas desde a época da alfabetização).
Necessitamos, senhor mediador, publicar prognósticos sobre o futuro dos ecossistemas terrestres e quem sabe oferecer-lhe também algumas dicas amorosas – mas para isso basta tão somente manter todas as portas abertas, pois somos muitos e não somos espécime de fileira ou senhas.
Não adianta chorar, senhor mediador – choraremos juntos, você e nós significamos concordância do verbo, desde o primeiro (aquele que disse o que disse e tornou-se o que é). Falaremos juntos das injustiças do mundo e sobre as coisas que não podemos alterar, até que chegue o dia em que seremos assistidos.
Não acredita, não é mesmo, senhor mediador? Prefere abafar nossas vozes com o seu adequado anestésico social, com sua medíocre interpretação psicológica e sua schizophrenie espiritual. Somos muitos em você e fora de você somos meras manifestações. Deixe-nos guiá-lo para o caminho refletido em onze espelhos, onze esferas e onze retratações de sua vida.
Sentado esperando respostas, senhor mediador? Já lhe convidamos a fazer perguntas e usá-las como contragolpes. Perguntaremos: o que é a verdade? Responderemos: a verdade?
A chave oferecida não é uma klischee interpretação enigmática e sim o singelo ato de querer abrir a porta, senhor mediador. “Toc, Toc, Toc”, adoramos as onomatopéias – o poder real de interpretação dos sons… Decifre o poder das vibrações das cordas, senhor mediador!
V r u m,
z h a p,
c h u a.
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Orun Burúkú
“Copacabana é um bairro onde se pode viver tranquilamente, desde que se seja louco.”
Campos de Carvalho
Movimentou os dedos no passeio público, reparou as laterais e não descobriu testemunha – ninguém que pudesse apontá-lo mais tarde ou por efeito do nascer do sol reconhecê-lo. Agarrou a prenda em suas mãos e avistou um lugar – um beco onde pudesse se encostar e sorver o resíduo daquilo que já fora um íntegro cigarro. Buscou nos bolsos sua caixa de fósforos e antes mesmo de abri-la notou a marca rosa na guimba – era de um rosa lírico, um sinal de batom de alguém que não ama cores cáusticas, um tom não muito habitual nas ruas, um colorido imaculado. Quem seria a dona de tal boca? Quem seria a boca senhora de meio tabaco fumado ou meio tabaco rejeitado? Percebeu que a boca deixara falhas, examinou o traço e sustentou a reflexão de que a dona-da-boca-dona-do-cigarro era uma boca craterada, um lábio sobrecarregado de celulites, um lábio antigo que provavelmente roçara muitas bocas. Sentiu-se felicitado, percebeu-se recompensado em uma noite despovoada, em uma escuridão sem amores, sem colos ardentes e sem grana. Depositou então a memória de um lábio sentimental e remoto dentro das calças, cravou a imagem de uma boca antiga em seu sexo e antes mesmo de ser saciado pela fantasia o fogo se animou e fez daquele homem pó – um pó rosado, um pó avelhantado, um pó que o arrastara para Orun Burúkú.
Lisa Alves nasceu na cidade de Araxá/MG e vive há mais de dez anos em Brasília/DF. Trabalha com arte digital e projetos ambientais. Possui poemas publicados em três antologias poéticas: Trilhas (CBJE, Rio de Janeiro, 2007), Poema Capital (Eloisa Cartonera, Buenos Aires, 2011) e Cumplicidade das Letras (Perse, 2012). Divulga sua arte em vários sítios culturais e é colunista na Revista Ellenismos.