Fernanda Fazzio
As definições acerca do Belo são há muito tempo o alvo de inquietações de filósofos e de artistas. E é devido a elas que se tornou possível reconstruir uma história da estética. Contudo, o mesmo não aconteceu com o Feio, havendo poucos tratados e considerações relevantes sobre o tema. Aqui, partindo das reflexões de Umberto Eco, não se pensa o Feio em oposição ao Belo, mas sim em suas características peculiares, considerando conceitos próprios, relativos aos vários períodos históricos e aos seus estranhamentos nas diversas culturas.
A primeira margem
Eu sou o Bobo da cidade. Porque, em todas as cidadezinhas com pôr do sol entre as montanhas, precisa-se de um tolo, de um idiota, daquele a quem todos se referem como o lunático-fracassado-da-cidade. Sim, eu, muito prazer. Mas nada peço a ninguém, não preciso de esmolas, só propicio um encontro quando me ordenam. Eu, descuidado, vivo assim mesmo, no meio-fio de uma existência imprecisa. Um poeta um dia disse: “Esquecer é des-existir”. E fiz disso meu amuleto profético, eu não desisto, eu existo tecendo o vislumbre do invisível.
No começo dos tempos, já invejei os homens engravatados da cidade grande, aqueles que saem de casa com aroma de pó de café. Percebo que gozam de uma rasa felicidade, agarrando com destreza uma gravidez próspera de certezas, mas não percebem que são escravizados dia a dia por aquilo que mais lhes falta: tempo. E depois se corroem pelos equívocos de suas vidas empacotadas – meras verdades chamadas de absolutas e que costumam ser levemente incômodas. Isto também acontece por aqui, algumas pessoas se acham, sem mais, imortais. Formados para obter resultados, às vésperas do dia final, arrependem-se de uma existência com sentidos rasgados, amores incompletos e escolhas interrompidas em uma vida que não valeu a pena ser vivida. E o que lhes resta? O indizível, eu lhes digo, junto ao seu último suspiro.
Eu logo percebi que essas coisas não eram para mim, sujeito de uma autoria que não se escreve em pauta, mas que se esgarça entre uma linha e outra da existência. Foi então que, certo dia, adormeci no trajeto, cheguei até o final da linha do trem e, distraído, vim parar aqui em Vila Grandina.
Sou odiado por muitos, não nego. Por sempre conversar com os detalhes inquietantes da cidade, sutilezas despercebidas aos olhos comuns, sou conhecido por muitos como “aquele lá”. E quando me chamam, algo da ordem do oculto parece surgir. Mas, como eu lhes disse, sou necessário aqui. Sem mim, Vila Grandina se tornaria uma cidade ainda mais morta, sem memória, sem lembranças, sem passado nem mesmo uma história.
Admito que meus pensamentos desaforados são como as águas dos grandes rios. Em tempos de chuva, chegam como enchentes aos ouvidos desavisados. Minha consciência lampeja quando sou tomado por ideias estranhas sobre os moradores daqui. Meu talento é decifrar as pessoas desta cidade, até aquelas que parecem mais assustadoras do que eu. Eu sei de tudo, conheço o jeito de cada andar, os seus perfumes caros ou comprados de viajantes clandestinos, os vícios mais secretos e as singelas virtudes em suas vicissitudes. E também o mais terrível escondido: eu sei dos segredos, das histórias contadas por jurados, dos encontros sorrateiros, até das lembranças que deveriam permanecer esquecidas, que faço retornar como reminiscências opacas.
Moro nas coisas deixadas pelas pessoas. Carrego tudo o que posso comigo, nunca me desfaço de nada, tudo aqui assim, junto a mim, nesse lhano carrinho de mercado. Ando a cidade inteira com ele. Os moradores de Vila Grandina se livram do lixo de suas casas, mas não conseguem tirá-lo do bairro. E as pessoas me veem atravessando as ruas com essa carga de outros e não me compreendem. Crença ou ciência, eu também já desisti de tentar explicar sobre as incessantes vozes lancinantes e memórias perdidas. Mas mesmo assim elas me dão comida, às vezes um casaco ou um livro. Talvez porque ainda me reconheçam dos anos de trabalho na Biblioteca Municipal, dos tempos de uma vida ordenada, regrada por garantias institucionalizadas. Contudo, foi preciso abdicar de tudo, essa minha essência necessita de solidão, de quietude sem lugar comum. Só assim chego à superfície do manto de angústia quase insuportável, meu companheiro fiel no desespero gelado.
Nunca se viu por aqui, nem se ouviu de terras longes, do enterro de um anão, menos ainda de uma anã. Talvez eles nem se autorizem a aparecer com as marcas do tempo. Eu sempre penso sobre isso. Os anões não morrem, como dizem, viram alguma outra coisa, não se sabe ao certo à qual maldição estão destinados. Crueldade ou destino, pouco importa agora, as atitudes mais terríveis são por vezes camufladas em perfumes importados e saltos de verniz, doces vozes escondem as ações mais desagradáveis.
Às vezes eu vou até os trilhos abandonados onde a pequenina foi encontrada e me recordo do dia em que ela chegou aqui. Fico à procura de alguma explicação para não deixar aquele corpo condensado morrer em mim. As vozes silenciam naquele lugar, acho que não podem se manifestar ali, há sem dúvida algo de sagrado nos cascalhos. Por isso, quando estou perturbado em meus devaneios confusos, vou até a estação para tentar assentar minha cabeça no lugar. O único que me acompanha fielmente nesses retiros é Preto, ficamos sentados nos trilhos, olhando um para o outro, desatando sentidos em um infinito sem tempo. Eu tenho cá para mim que ele sabe de tudo, mesmo em sua condição de gato que emudece o seu miado, eu sei que não ignora o fim da pequenina. Nós bem sabemos que ela deixou esse mundo na sutileza da sua menor grandeza.
Fernanda Fazzio é psicóloga pela PUC-SP e bacharel em Teatro formada pela Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH). Buscando aperfeiçoar a sua escuta clínica, especializou-se em Semiótica Psicanalítica: Clínica da Cultura (PUC-SP) e realizou a sua formação em Psicanálise com Crianças pelo Instituto Sedes Sapientiae. Escreveu a “A Inquietante Beleza do Feio” (Patuá, 2014), livro de ensaios e contos poéticos sobre as máscaras, o feio e a criação artística.