Maira Moura
52 hertz
Muito longe das bravuras humanas, dos arcos urbanos e das balbúrdias eletro-retrógradas, dos klaxons e apitos polifônicos, das freadas aromáticas, do parquinho das crianças, do farfalhar e do piar, da massa atmosférica que uiva no campo, no deserto, na charneca, e mesmo longe das costas salgadas, das areias meladas e da última espuma.
Longe demais, em um universo todo azul, maior ou do mesmo tamanho que o universo estrelado; um sítio de densidade, iluminado por cima, trevoso por baixo, é onde mora a última de sua espécie. Queria dar um bom nome para ela, como uma espécie de consolo: “você é especial, merece nome de gente. Que tal Elizabete? Catarina? São nomes de rainhas”. A baleia tem olhos pequenos e doces e uma potente voz que satisfaz a música de todo um mar. Vaga pela estrada submersa de joias crustáceas e… “vaga”? Seria mesmo um vagar sem rumo ou teria um propósito? Não é por lhe faltar um papel na família tradicional, uma ocupação burocrática na conjuntura dos mamíferos marítimos, ou da idosa moderna, que ela seria uma vadia. Caso contrário, seriam os animais todos uns vadios. Nada disso. Ao menos para os animais, existe um propósito suficientemente definido e propriamente nominado: o Ciclo.
Mas a senhora não procriará, ela é a última de sua espécie.
Cresceu redondinha, adolescente tímida, embaraçada de sua própria falta de jeito perante os animais menores; sua dimensão astronômica que ao mesmo tempo que a aproxima dos outros seres (por uma questão espacial), a distancia dos mesmos. Tentou penetrar uma família de jubartes, como um pato criado por cisnes, mas só conseguiu que a chamassem “baleia feia”.
Baleia
Como és feia
Uma chata bedelha
Some, se der, esgueira
Que o mar te aconselha
Por isso geme. Na infância gemeu “Papai? Mamãe?”; na adolescência gemeu por seu par. Agora, velhinha, não nos dá pista de quem chama. Não há em sua estante uma caixinha de contas com o retrato adesivo do neto sobre a tampa, nem na geladeira um desenho feito pela neta pregado com o ímã-lembrança da viagem para o litoral. (Preciso colocá-la em uma casa de senhora porque não compreendo suas referências azuis – porque entendo a essência de sua solidão, mas não a dimensão. E porque saio a humanizar tudo o que não compreendo, para satisfazer meu desprezo à ignorância. Não suporto ser ignorante.)
Medrosa da humanidade, não se permitiu ser vista, somente escutada. Um dia vai morrer e consigo enterrar a história de sua família (o que seria uma boa vingança). Os cientistas não vão prestar luto, mas criarão muitas teorias em sua memória.
Nunca nos encontraremos, me basta a gravação do seu gemido, frequência 52 hertz. Embora seu rastro seja sonoro, tão audível quanto o desabrochar de uma flor, e o meu seja o desastroso rastro da humanidade, ainda insisto em levá-la no coração, como uma irmã sentimental. Porque também sou uma solitária, a última de minha espécie.
***
Trecho para hipnose
Não estou dizendo que o livro funcione como um estimulante psicoativo, mas digo que aconteceu comigo. De qualquer forma, não é nada prático como uma pílula ingerida com saliva ou o método sublingual, mas leva pelo menos trezentas páginas até a primeira onda, que é pseudo-onírica, porque você precisa estar encaminhado para o sono, ainda sem dormir. Depois das seiscentas páginas os cavaletes e cavalinhos começam a cair como chuva no seu quarto, mas talvez isso seja pessoal porque os cavaletes são o símbolo do meu suporte e cavalinhos, símbolo da minha força. Chegando às oitocentas páginas, você não vai lembrar quem é e andar nu publicamente não é uma impossibilidade. Já ouviu falar na loira nua do parque Ludwig? Ela estava carregando um exemplar pocket totalmente improvável desse livro.
***
Saudade e nostalgia
Um menino perguntou ao avô:
– Qual é a diferença entre saudade e nostalgia?
– Bem, é muito pouca e só tem uma maneira de explicá-la, que é contando a história do homem que foi para guerra. O homem que foi para guerra havia acabado de se casar, ou estava prestes a casar, quando partiu e deixou sua mulher, que era tudo para ele. A partir do momento em que saiu pela porta de casa duas meninas começaram a segui-lo, e com ele foram à guerra. Estavam quase sempre ao seu lado – evitavam as trincheiras e tinham medo de armas, mas bastava que ele se desocupasse por um segundo que elas surgiam. Eram duas irmãs muito parecidas, quase gêmeas, e seus nomes eram Saudade e Nostalgia. Às vezes, o homem cobria os olhos com as mãos enlameadas, enquanto as meninas corriam em sua volta, cantando cantigas de distância.
“Um mês, duas milhas,
Meu amor está longe
Três cartas, quatro feridas,
Nos separa um monte”
– Outras vezes, tinha vontade de estrangular os pescocinhos, mas isso não podia fazer. Quando a guerra acabou, as meninas os seguiram até a porta de casa. Era branca, a porta, e por trás dela vinha a mulher, que ia dizer o seu nome quando ele a pegou, abraçou e beijou, sem intervalo entre essas coisas. Não se deram conta da segunda explosão, que foi o tiro que ele deu em Saudade. Ela não morreu imediatamente, foi agonizando por dias, enquanto o homem e a mulher se acostumavam, outra vez, um com o outro. Contudo, Nostalgia seguiu ao lado do homem. E era justamente perto da esposa que mais ele escutava a canção de Nostalgia. E por mais que tentasse pegar Nostalgia, não conseguia alcançá-la.
***
Mania
Jéssica tinha a mania irritante de comprar relógios caros e olhar, quando perguntamos a hora, o visor do celular. Mateus escrevia sem usar vírgula e isso era além da conta. A mania irritante de Cléber era a música alta no carro dele (e ainda achava que dava para conversar). Sócrates tinha a mania da higiene dental e escovava os dentes à cada balinha de menta que lhe ofereciam. Carlos Alberto era um falastrão, mentindo sobre números e mulheres, mas ele não podia parar, era mania. Lola, quem eu nunca chamava para jantar, comia fazendo barulho que nem uma engrenagem. A mania irritante de Sofia era mostrar para todo mundo a foto que tirou com a Madonna e a minha é anotar manias irritantes.
Nascida e residente do Rio de Janeiro, Maira M. Moura é formada em Letras, leitora, contista e autora do livro O Jardim Animado (ed. Multifoco), além de ter contribuído para alguns periódicos, de papel ou não.
Amei Maira, suas imagens são instigantes, de tão prováveis. Sei que essa baleia merece minha reverencia tambem, que Nostalgia costuma mangar de mim e ainda me põe culpa por sua infeliz existência e manias irritantes talvez eu as tenha alem do tique no nariz identificado como energia acumulada no fígado pelo acunputurista. Paciencia com tudo isso. Alba