Dedos de Prosa II

 Silvana Guimarães

 

Ilustração: Ana Matsusaki

 

Carteira de Identidade Nº 803.412

 

Alguém está cantando perto daqui. Um cachorro late. O carro freia com estardalhaço e deixa um silêncio sem eco, depois. Um galo cocorica, em despropósito. Uma criança chora, um homem tosse. Eu começo um trabalho de parto ao reverso: vou dar à escuridão um poeta. A escuridão completa, definitiva, única espécie de eternidade em que ele acredita. Nenhum anjo torto por perto. Apenas eu, a outra. E essa coleção de ruídos.

Minha mão direita segura a sua mão esquerda (tão vazia tão fria).

Lio…

Sim.

Ele não diz nada. Apenas me olha e tão brevemente seu olhar confirma: cheguei a tempo: era só eu quem faltava para a sua partida. Entrega-me, então, seu último fôlego.

 

Meu nome de batismo e registro é Lygia Fernandes, mas durante 36 anos, sempre às tardes, sempre no meu apartamento, fui a sua Lio. E nos amamos, dançamos, rimos juntos como todos os animais que se amam com fervor. Anos à sua sombra: eu nasci para ser a sua sombra. Agora mesmo, que eu o tenho morto em minhas mãos, estou à sombra de sua morte e nela permanecerei, como se morta também estivesse.

Os obituários estão prontos, amanhã vão noticiar. Em vão, jornalistas do mundo todo virão me buscar para a triste inquisição. Eu negarei tudo, nada direi a mais. Não contarei que o bardo roncava e não tinha chulé. Nem as palavras obscenas de sua preferência, recitadas ao meu ouvido, quando eu lhe pedia decifra-me, e ele me devorava.

 

Decifra-me.

O defunto amado apenas sorri:

Quer se prevalecer do meu corpo inerte?

Quero que desvende a minha poesia escassa. Quero que me responda o que eu nunca perguntei, o que nunca aprendi (agora é tarde?).

A sua poesia de banheiro, você cansou de dizer, ele sorri, de novo.

 

 

***

 

 

Lembra-se do poema de amor, abril de 1974? A dedicatória?

Eu nunca esqueço. Estava escrito: Charlie, nu em pelo.

Pronto, nada mais a declarar. Tudo o que eu quis dizer, está escrito.

Mas eu não estou falando de amor. Já nos falamos tudo do amor. Quero saber da poesia, da inspiração: é coisa do destino, é arranjo da genética? A gente já nasce com ela? Como se nasce de olhos azuis ou castanhos?

Ah, os olhos. É preciso revirá-los, mantê-los atentos, há que haver intenção no olhar, olhos de observar, de ler, de ler até o silêncio das coisas inauditas. Os olhos têm de ser mágicos, constantemente atados à imaginação. Os olhos são importante instrumento de criação…

Borges era cego.

Falo de outros olhos, que têm tato, consegue perceber? Os olhos de dentro.

Sim, os olhos profundos, de mergulhador, eu percebo.

Então…

Não acabei: e os adjetivos tontos?

Sobre isso eu cansei de dizer: entre dois deles, escolha um substantivo. E não me leve ao pé da letra, por favor. (Os seus são pequenos arremedos de metáforas abortadas, covardes).

E você me amou assim mesmo.

Assim.

Superficial (eu nunca desmaiei).

Assim.

Com todos os meus temores e insignificâncias.

Assim. Tire a roupa! Tire tudo. Fique pelada, entendeu? Mostre as estrias, a celulite, a flacidez. Mostre à poesia o que cansou de mostrar a mim. Não lhe negue nenhum pedaço de você. A musa é uma puta a quem se deve esperar e se entregar completamente despojado, sempre.

Por favor, você pode.

Não posso dizer o indizível.

Mas você exerceu o cargo de poeta como se fosse um servidor público, batendo ponto, a vida inteira, ano a ano, mês a mês, dia a dia, minuto a minuto. Explique-me: de que substância foi feita a sua imaginação? De onde arrancou esses olhos?

Que o amante manteve fechados. E calados. Repetindo em silêncio que não era um deus, que era ínfimo (além de tímido, sem graça).

Você dizia que a sua escrita era a sua terapia. Devo acreditar então que todo poeta é louco?

Deve deixar-me em paz. A paz sonhada em verso, em prosa, a paz da paz da paz: aquela que me faltou enquanto eu vivia.

 

Então me dou conta de que ele não está mais ali, somente o peito mudo.

Nunca mais, penso (aniquilada).

Nunca mais, choro (discreta).

Nunca mais, reajo (intrépida).

Antes que me tomem seu corpo arredio — seu andar curvado, de cabeça baixa, braços colados às pernas, o ar antigo de seminarista — antes que me levem a sua alma, antes que me arranquem o seu coração, insisto:

Eu quero a senha.

O poeta abre os olhos e a boca, puxa a dentadura com a língua, deixa-a pendurada nos lábios, a careta desfazendo-se num sorriso descomunal, teimoso, de goiaba vermelha e madura. Com voz pálida e murcha, anuncia — assim na morte, como na vida —, irredutível:

 

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

 

Silvana Guimarães (Belo Horizonte/MG). Socióloga e escritora. Organizou e participou de algumas coletâneas, entre elas, Hiperconexões — Realidade Expandida Vol. 2 (Org. Luiz Bras, Patuá, 2014) e 1917-2017 — O Século sem Fim (Org. Marco Aqueiva, Patuá, 2017). Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do site Escritoras Suicidas. Lança seu primeiro livro, de poesia, em 2018.

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