Dedos de Prosa II

Maria Lutterbach

 

“Os Bodelaires”: Claudio Parreira

 

Fuga número 1

 

No meio do país ainda se acredita em Deus e no casamento, as pessoas vão à praça, fazem festas na calçada da igreja, sorriem e comem carne em churrascos civilizados lá no meio, longe de tudo, perto do mato e da água, onde poderiam ser mais selvagens, acreditam no progresso e confundem progresso com:

 

Deus
emprego
casamento
previdência
e morte

 

A gente não cresceu ainda, então é mais fácil fingir de doida e escapar da catequese para ir nadar, correr léguas da catequese e zunir da missa, cruzar a rodovia na garupa de uma moto e queimar a batata da perna, beijar atrás de um caminhão pisando em galho seco, fazer gangue para roubar bombom, se depilar na casa de uma tia
estranha
voar para muito longe dali
e nunca mais voltar

 

 

 

***

 

 

 

Fuga número 2

 

Se tudo começa quando a gente fala, então as palavras eram:

 

mapa
mala
festa de adeus
(último) contra-cheque
salto
medo
vontade

 

Socar tudo em duas portas de armário, vender a mãe e a sogra num mesmo pacote, telefonar para aquela prima distante, cavar uma carona no sete de setembro e varar as montanhas para pegar essa garoa que molha a alma e às vezes demora a secar.
mas seca
e a gente aprende que é bom
carregar capa de chuva

 

 

 

***

 

 

 

Fuga número 3

 

Ali está um bueiro (a palavra é alcantarilla, em espanhol) feito para quem não teme passeios pelo subsolo dos diabos brancos, como o da carta do tarô.

 

– desça, diz o lobo
no eco de um bom mistério

 

Metros abaixo, a vista embaralhada de desejo e perdição, exploro corredores compridos, sem bússola nem lanterninha. Viro menina-morfina sob um feitiço amoroso que abraça e paralisa.

 

– dance, ri o lobo
ao som dos seus maiores medos

 

Nas galerias que servem como salões de baile, sou vestido, maquiagem, laço grande no cabelo. Quase não sei por qual buraco entrei e tenho um arranhão vermelho no pescoço quando a festa termina.

 

– fuja, rosna o lobo.
com uma boca enorme que me morde forte
mas assopra sempre que o primeiro raio de luz
atravessa nosso quarto

 

Maria Lutterbach (1982) é mineira e vive no Rio de Janeiro, onde escreve e realiza projetos audiovisuais. Foi cronista do jornal “O Tempo”, de Belo Horizonte, e colunista convidada no blog da saudosa Cosac Naify. Seu romance de estreia, “Baixo Araguaia”, será lançado em breve pela editora Quelônio (SP).

 

 

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