Dedos de Prosa II

Anderson Fonseca

 

Foto: Ricardo Stuckert

 

Aforismos

para um ensaio autobiográfico

(Fragmentos de uma obra em processo de criação)

 

1.Maria, minha mãe, de 57 anos, tem esquizofrenia.
2. Nada é mais doce que a tortura cotidiana para deformar o espírito de uma pessoa. Mamãe explicava com muita clareza o método de vovó.
3.Porque o dizer importa! – exclamava Maria a seu marido. Não, ela não dizia a ele sequer uma frase completa. Maria dirigia sua voz ao invisível que habitava as paredes. Contradizendo o valor do inaudito, ela ressignificava o dizer. A ruptura do silêncio era o emergir de uma nova percepção do espaço que a envolvia. Percepção essa manifestada na palavra. Cada elemento desse objeto sonoro, apenas exercia a função narcisista de realçar a subjetividade de Maria. …quanto mais falava, mais percebia a si mesma.
4.– A esquizofrenia de Maria obedece à 2ª lei da Termodinâmica. É irreversível. A desordem tende a aumentar até um estado futuro em que você não mais a reconheça. Antes desse dia chegar, é melhor não estar com ela. – sentenciou o médico.
5. Em 1992, mamãe saiu de casa. Desde então, vivo em 1992.
6.Existem três verdades sobre Anderson:
………a) Ele, enquanto nome e sujeito, não passa de uma crença reforçada pelo tempo.
………b) Houve cinco Andersons em três décadas e meia. O atual é a soma dos anteriores.
………c) O atual existe em conflito com os anteriores.
7.Quanto a Anderson não sei o que afirmar, porque:

……..a) O original durou do nascimento até o dia em que uma tempestade se manifestou em sua cabeça.
……..b) O segundo apareceu em 1992, levando à morte o primeiro*.
……..c) Já o outro veio a surgir na virada do século 20, durante o curso de Letras.
……..d) E o quarto sorriu em 2012, assim que suas mãos envolveram a pequena Ana Clara.
……..e) Mal conheceu a traição, o quinto emergiu.

…. Daí a impossibilidade.
Estou certo disso: o segundo é uma constante que molda todos os posteriores.

8.Um parasita controla o cérebro de minha mãe. No exato instante em que o ingeriu, perdeu o domínio das emoções. Agora não sei dizer se ainda há algo nela que possa ser Maria.

9.Em 26 anos, ela desapareceu.

10.Mas antes de esvanecer, Maria foi:

………………a) A mão que rascunhou minhas fantasias.
………………b) Os cabelos encaracolados que enovelavam-se em meus dedos.
………………c) O riso ante o grito e a angústia.

11.Em 26 anos, percebo agora que eu também esvaneci; mas para quem?
12.Deus ama os seres mutilados.
13.A ordem era que, com oito semanas, o prepúcio que envolve a glande fosse cortado. Mas, somente com oito anos, tive esse privilégio.
14.Quando a pele foi arrancada, Deus tirou de mim o prazer. Em seu lugar, a graça de uma vida clemente.
15.A Bíblia tornou-se minha penitência. E após um tempo que não sei determinar, me converti.
16.Na conversão perdi o meu nome. Perder o nome é o mesmo que cindir o ser.
17.Eu sou um homem mutilado.
18.As mutilações foram três sequencialmente:
………………a) Maria.
………………b) O prepúcio.
………………c) A traição.
19.Deus me ama.
20. A loucura constitui-se em um crime contra seu possuidor. Há quem o converta em poesia. Não o louco. Com que paga seu crime? Barganhando o corpo. É uma oferta generosa: perder um pouco de si para ganhar alivio à dor.

21.O louco, meu amigo, é um penitente.

22. A oferta teve um lucro: Kelly.

23.A avó não permitiu que Maria cuidasse da própria filha. Kelly foi tomada. O louco não é apto para cuidar de uma criança. Que pena! Ninguém permitiu que criasse os filhos. Nem Deus, nem o marido, depois nem o primogênito. Acusada, foi banida.

24.Internada em um hospício, fugiu.

25.Em um instante de frenesi, quando o delírio toma as feições do espírito e o poeta manifesta-se cantando o porvir, Maria gritava nos corredores do hospital.
26.Sem filhos, assim ela passou o resto da vida.
27.Maria morreu em uma cama de hospital sem estar cercada pelos próprios filhos.
28.Morta, Maria foi sepultada.
29.Kelly esteve presente, apenas.
30.Sem Maria tudo é permitido.
31.Sem ela, Anderson é responsável por qualquer dor que a escolha lhe trouxer. Não pode mais culpá-la.
32.É tarde

 

* N.A.: O primeiro não é o mesmo que o original, cujo sentido etimológico é creatio ex nihilo.

Anderson Fonseca é autor dos livros “Sr. Bergier e outras histórias (2016)” e “O que eu disse ao general (2014)”. Atualmente, cursa Mestrado em Filosofia na Universidade Federal de São João Del Rei.

 

 

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