Dedos de Prosa II

Enio Jelihovschi

 

Desenho: Fernanda Bienhachewski

 

A meia morte de Chico Cego

 

Chico cego viveu meia vida e meia morte, só foi inteiro quando morreu. Por isso mesmo durante toda sua meia vida conheceu a morte.

– Amanhã, morro.

Onofre e Herculano riram:

– Mas, como, Chico Cego?, disseram em uníssono.

– Não acordo mais, ou acordo morto. Acaba minha meia vida, já conheço bem o escuro.

A palavra escuro tinha um significado metafórico para ele, fora da realidade, pelo simples fato de que nascera cego e, sem nunca saber o que era luz, não tinha como comparar. Escuro para ele era um nome que tanto podia ser branco, colorido ou até luminoso. Durante a vida, em sonhos ou em grandes bebedeiras, brilhos espocaram pela sua mente, mas ele não tinha como descrever para si mesmo aquelas coisas na cabeça, por lhe faltarem as comparações, que na mente de uma pessoa não cega são corriqueiras. Seu mundo era tátil e sonoro, luz para ele era algo etéreo descrito por mera formalidade, por meio daqueles dois sentidos. Luz, cores, brilhos eram palavras sem sentido, usadas somente para melhor se comunicar com as pessoas “normais” do mundo.

Onofre e Herculano eram seus parceiros de bar, sempre bebendo e sempre conversando. Eles falavam do mundo da luz, das mulheres bonitas, o que Chico Cego entendia com as mãos. O que era uma mulher bonita?, ele perguntou uma vez. Os amigos se olharam entre risos. Mulher bonita tinha um corpo bem feito, um sorriso com dentinhos alvos, olhar distraído de donzela e rebolava ao andar. Como fazia Chico Cego para entender estas coisas com as mãos? Teria de tocar o traseiro de algumas e ir apalpando enquanto ela andava. Chico Cego então tocou o seu próprio e mexeu.

– Ah! Então isto é uma mulher bonita!

Uma vez perguntou à mãe, quando ainda criança, o que era a morte.

– A morte é a escuridão total.

– Mas, mãe, você me disse que o cego vive na escuridão porque não enxerga. Então eu estou morto.

– Não, meu filho, você tá vivo, é que você é cego.

Chico Cego não entendeu e desde então viveu convencido de que estava morto, ou melhor, meio morto. Hoje, sentiu, lá no fundo, que amanhã seria morto inteiro, deixaria a metade viva de lado. Para ele seria um ato normal, sem muitas consequências. Como foi que sentiu, não sabe explicar. Sentiu. Talvez, depois de beber alguns goles de uma cachaça, da boa, pudesse encontrar as palavras. Chico Cego sempre gostou dos goles, a cachaça fazia aparecer coisas na sua cabeça, seria isto luz? Os amigos descreviam coisas como chispas brancas, algo dourado como o sol, mas sol para ele era somente um calor que queimava a cabeça e ardia as costas. Ele chamava isto de coisas, não conseguia encontrar outras palavras e por isto continuaram coisas. Eram as coisas desconhecidas que apareciam na cabeça, depois dos goles.

– Chico, o que eu quero saber é: como você vai morrer? Você vai se matar, vai se jogar em cima de uma faca ou na frente do trem, ou então vai tomar veneno? Pois é, como? Ninguém morre só porque quer, ainda mais com uma saúde de ferro como a sua.

Herculano perguntou, enquanto coçava o cabelo ralo e mordia um dedo num tique nervoso. Os dois amigos se olharam, Chico Cego sentiu os olhares e sorriu. Como ele podia sentir olhares sendo cego? Dizia ele que isto era a visão do cego.

– Eu não sei como vai morrer o resto que me falta, disse ele, quem sabe um carro passa por cima de mim, ou um avião cai em cima de mim, mas não precisa muito, só falta um pedacinho. Quem sabe encontro a Francisca? A desgraçada me deixou, a mulher mais bonita do mundo. Um dia ela disse que me olhou nos olhos e perdeu a vontade de homem. O que é isso, “olhar nos olhos”? Eu não tenho olho, tenho uma coisa na cara, mas não enxergo, então não tenho olho. Será que ela morreu? Quem perde a vontade morre. Eu não perdi a vontade, mas, mesmo assim, vou morrer. E eu acho que, morto, encontro ela.

Onofre e Herculano se lembraram da Francisca. Foram eles que a apresentaram a Chico Cego, era a mulher mais feia da cidade, tinha o rosto torcido, gordíssima, falava pelos cotovelos, condenada a viver sozinha. Chico Cego a conheceu com as mãos, apalpou, correu por todos os cantos e recantos e assim foi definindo seu conceito de mulher bonita. Quando terminou, registrou na mente o que seria a mulher mais bonita do mundo. Os dois amigos também sabiam que Francisca não aguentou a forma de Chico Cego olhar para ela com as mãos, ele a tocava tanto, rebuscava por todos os seus recônditos, não parava, dizia que estava olhando, desfrutando da sua beleza. Assim eu enlouqueço, desabafou ela um dia. No outro, foi embora.

No dia seguinte ao anúncio, Chico Cego morreu. Foi atingido por um raio num dia de sol. Ninguém sabe como. Parece que havia uma nuvem esperando por ele na curva da estrada. Pouco antes de chegar em casa, ela avisou com dois trovões e, logo após, descarregou um tiro certeiro bem na cabeça. Disseram que, antes de morrer, ele gritou: luz!! Os amigos comentaram que neste segundo antes da morte, enquanto o raio penetrava pelo crânio adentro, ele viu. Eles então levantaram os copos de cerveja e fizeram um brinde ao amigo que, finalmente, conheceu a luz.

 

Enio Jelihovschi nasceu e cresceu em Belo Horizonte. Aprendeu a gostar de livros com o irmão mais velho com o qual dividia o quarto e as querelas. Com ele também aprendeu a escrever e que escrever bem depende de talento e muita labuta. Atualmente é professor da Universidade Estadual de Santa Cruz, onde gosta imensamente do trabalho que faz. Vive em Ilhéus, a qual considera a cidade mais charmosa de todas que conheceu. Publicou o livro de contos “Assassinos de Aluguel” (Editus – Editora da UESC, 2013).  

 

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1 comentário

  1. Belo conto, parceiro!

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