Dedos de Prosa II

Vivian Pizzinga

 

Foto: Joice Kreiss

 

viga-mestra

 

coleciono noites. Olho aberto deslizando impune sobre prateleiras, livros, cinzeiros, hélices de ventiladores, olho aberto avançando sobre os escombros do que sobrou do dia. Há certa mudez ressoando nos quadriláteros adjacentes à sala estupidamente calada. Coleciono delinquências íntimas no caminho do baixo ventre, eloquência insuspeita que não deixa pistas, caminho borrado das 3 da manhã ou mais. Coleciono horas mortas em dias úteis, escassas tardes no que há de ar nos pulmões, e é quase nada. Coleciono asfixias, apneia viga-mestra num punhado de hesitações, olho aberto percorrendo a dúvida, vida esporádica percorrendo o chão. Na contabilidade dessa vigília endêmica, é dia sim, dia não que se dorme. Coleciono olhos abertos em seu escrutínio pela noite desprovida de bordas, avermelhadas pupilas de quem há muito se perdeu do caminho do sossego. E note: nenhuma gota a mais resolve o impasse. Coleciono solilóquios. Deslizes. Dias amanhecendo em qualquer época do ano.

Coleciono ecos.

 

 

***

 

 

miasma

 

isolada. exilada. asilada. arrasto um nó górdio no epicentro do corpo. vômito acumulado (volumoso líquido miasmático com espessura em centímetros) ou fome de muitos dias. o nó górdio deu cinco voltas ao redor do pâncreas, associou o fígado no bolo visceral e arrebanhou estômago e intestino delgado na embolada sem repente. a jornada em espiral do nó adelgaçou o intestino grosso, deu pontadas no marco inicial da garganta, fez o céu da boca rebaixar seu pé direito: língua esmagada, dentes espatifados, voz desaparecida, procura-se. jogo-me na cama, em exílio. pode ser que não me levante mais. olhos fechados pingando suor miram o teto com insistência. por horas a fio. asilo. azia. perco o fio da meada.

 

 

***

 

 

erro de cálculo

 

devastação. sintoma. erro de cálculo. entre o desejo, o amor e o encontro, larguíssima margem de erro. isso foi o que disseram, isso foi o que anotei. sintoma, glaucoma, rizoma, livre associação de palavras fanhosas. e os cadernos? esses, em que desenha suas anotações e depois joga fora, farta da sua fisionomia ali espelhada em letra que ninguém entende. e os cadernos? engodos com pauta, um preparado promissor de garrancho e linhas tortas. blocos prontos para o fracasso. às vezes, contêm espiral. não levam ninguém a nada, só à última página. 98 folhas. lá estão anotadas as pegadas sujas desse erro de cálculo, desse cálculo errático, dessa margem sem borda. é sintoma errante o que trago nas mãos, sempre retorna ao peito natal, aloja-se eficaz na sombra espraiada no lado esquerdo. é glaucoma que estoura a vista, liquefaz a paisagem imediata, rizoma que não se desborda. o amor é erro e é cálculo sim, acolho as advertências, sequer uso o artifício da rasura. mesmo assim indago, com o sintoma pulsando desde dentro, devastação a céu aberto, erro de cálculo numa equação sem começo, mesmo assim pergunto, minha voz um murmúrio acovardado: mas, vida, e se aí, quem sabe, eu for feliz?

 

 

***

 

 

repousa a cabeça larga na colcha do fracasso. de bruços, pensamentos disléxicos, afetos dislálicos, paixões tristes. quer esquecer o dia, apagar conversas da lousa ressecada, ocultar intentos. sente o lençol morno ofuscar o corpo, o sol morto descascar a sombra. epiderme castigada de toques sem mãos. afunda no colchão rugoso, ponte entre o nada e  coisa alguma, toca de silêncios distraídos.

desiste.

abandona a memória de si encorpada de atributos rasos. é melhor esvaziá-la. fecha os olhos vivazes para os sinais das vísceras em levante. desaprende a língua pátria, os gestos hábitos, os gestos rápidos, os gestos dádivas. repudia os verbos vagos. persegue o juízo último, perde o ar na empreitada. dobra em quatro o pensamento, adia-o, agora não.

adormece sem argumento.

prefere não ter razão.

 

 

***

 

 

quando eu quase morri 

 

quando eu quase morri, havia pessoas à minha volta, elas não disseram nada, não fizeram nada, e não pude gritar. quando quase morri, minha voz virou um fiapo estrangeiro, e era áspero, e era triste, era terreno baldio. as pessoas que me rodeavam (havia pessoas me rodeando) não sabiam que eu quase morria, mas ouviram meu fiapo. uma delas chegou a tocá-lo, aquele fiapo estrangeiro, irreconhecível, esguio. ela puxou o fiapo, e o esticou, e o esgarçou, e minha voz era agora um istmo, deixou de ser território, nunca foi lar. quando quase morri, ninguém me reconheceu, e o último a sair não se preocupou em apagar a luz.

 

Vivian Pizzinga é escritora e psicóloga. Lançou Dias Roucos e Vontades Absurdas (contos), em 2013, e A primavera entra pelos pés (contos), em 2015, ambos pela Editora Oito e meio. Em 2018, lançou, em co-autoria com o escritor Igor Dias, o romance epistolar Extravios, pela mesma editora. Tem participação em coletâneas diversas, como Escriptonita (Patuá, 2016) e Cada um por si e Deus Contra Todos (Tinta Negra 2016). Atua como psicóloga em Saúde do Trabalhador e na clínica.

 

 

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