Dedos de Prosa II

Dheyne de Souza

 

Foto: Lu Brito

 

Doroteia

 

Vi Doroteia uma única vez. Assustei-a parece que para sempre. Mas desde então, e isso já faz três dias, ela vem me perseguindo a lembrança a ponto de conhecê-la.

Gritei quando a vi. Na verdade, antes de vê-la. Apavoramo-nos ambas. Eu de ver um vulto estrangeiro cair atrás de mim no momento em que movimento a porta e acendo a luz. Ela de perceber meu semblante aterrado movimentando a porta no mesmo instante de acender a luz. Corremos para cantos opostos. Acalmamo-nos, aparentemente. Fui eu quem deu o primeiro passo.

Não sabia ainda o seu nome, Doroteia. Dei três passos e pude contemplar seu silêncio indescritível. Era tão fiel sua ausência completa de movimento que era mesmo possível acreditar que não estava ali, o que era justamente o que ela queria; era mais que perceptível, sensível. Cometi nossa espécie mais chula de pecado e fingi que cri.

Não sei exato. É possível que tenha me dito seu nome, agora pensando bem, naquele tempo ali. Alguns minutos fiquei decorando a recorrência de padrões em sua pele. Fecho os olhos e posso rever sua textura. Jamais descrevê-la.

Busquei metáforas, perdi. Acredito agora também que não emiti som, também não acho que me lembre mais ultimamente o que é isso de a voz ter função externa. Sei que tentei falar-lhe. Provavelmente – agora é que isto me ocorre –, falei na altura com que me falo todo dia bom dia, com que rego as plantas, bebo o café, vejo o noticiário, abro a janela e volto à cama. Telepatia, acho que é essa a palavra que dizem. Diziam.

Joguei fora uns passos na cozinha. Passei os dedos na mesa da sala. Pensei em lavar a cortina. Gastei uns segundos ou mais avaliando o gelo do congelador. Tirei duas batatas e carne moída, que tenho deixado assim os ingredientes soltos na pia a ver se me dizem como preferem renascer. Conferi a chave na porta.

Voltei ao meio da sala. Olhei para a porta onde Doroteia e eu nos esbarramos há pouco. Foi nessa ocasião, agora é que me recordo, que elegi Doroteia como seu nome e acatei a ideia até então sorrateira de tê-la como nos filmes, nos livros ou nalguma anedota antiga de vizinho, não tenho tido propensão a exatificar as memórias, enfim, de tê-la como amiga. Comentar novelas. Reclamar dos preços. Bodejar à toa.

Dei mais dois passos em direção a ela, Doroteia. Estanquei avaliando a utilidade que seria. Nós duas feitas fraternas. Ela aparecer de repente, agarrada nas paredes. Fazer a pose de morta. Riríamos da primeira vez à porta. Você me desculpe é que não sabia. Eu que não sabia. Hahaha, hihihi. E aquela velha história de. Como é que se diz o nome? Conviva, conveva, convisser. Enfim.

Se bem me lembro, ainda a vi uma vez. Não, não foi. Senão começaria mentindo. Sei que, mesmo deixando a porta aberta, a luz acesa, o grito calado, quando voltei, Doroteia não estava mais em lugar algum. Olhei atrás, dentro e debaixo de todos os móveis. Encontrei, inclusive, uma meia que havia abandonado seu par. Nem parecia infeliz. Nem eu me havia dado conta. De qualquer modo, levei a meia para a máquina de lavar. Não quis ligar, menos pela energia que já aumentou vinte por cento mesmo com toda essa loucura acontecendo lá fora, mais porque ainda não sabia se Doroteia gostava de barulho alto. Ainda mais a essas horas.

Não. Agora eu tenho certeza porque, como já disse antes, embora ninguém confie em nada ou nada seja digno de, eu comecei a conhecê-la melhor. Doroteia. Fiquei um tempo escorada na máquina de lavar. Deixei a luz apagada. Ela também prefere assim. Nós combinamos tão bem. É uma pena que tenha durado tão pouco. Ou não. Ainda não sei. Pode ser que ela esteja ainda em algum lugar, espreitando-me, conhecendo-me. Não posso recriminar sua apreensão. E eu gritei deveras alto. Doroteia não disse nada. Um silêncio dos mais elegantes. Mesmo quando eu a devorava com esses olhos desumanos, nunca perdeu a compostura.

Olhando aqui essa sombra que cai na área de serviço. Quando percebo, já estou imaginando Doroteia morando ali, uma cama perto do tanque, meio embaixo. Logo em seguida, peço milhões de perdões. Embora saiba que ela de modo algum vai desculpar esse desvio de conduta.

Digo então, e de novo creio que em mente, que Doroteia fique à vontade para dormir, deitar, enfim, ter casa onde quiser apear. Só não parta. Não me abandone. Não vá pras ruas, é perigoso. Olho as janelas. Chego a me mover para fechá-las, para que Doroteia não se exponha. Abandono o ímpeto no ar. Não sei se precisa voltar.

Doroteia, quando digo esse nome, sai com uma pá de saudade e outra pitada de dor. O frio chega de madrugada. Sento-me na beirada do sofá. Olho o vulto das nuvens atrás dos prédios. Penso em cortar as unhas. Depois ouvir um vinil. Doroteia adora Bach. Ergo-me numa efusão acelerante. Qual sua uva preferida, senão shiraz. Peço escusas, Doroteia, hoje não tenho espumante. Brindemos a isso que a vida nos proporciona cruamente. O tempo. Sim. Essa migalha de pão.

Já faz tanto que não faço uma massa. Podemos tentar. Doroteia escolhe nhoque. Será uma pena sem sálvia. Quem sabe no mês que vem, quando formos ao supermercado. Escolhemos um dia de sol. Um horário mais pela tarde. Conferimos o movimento.

De repente, dou um pulo. Eu me assusto. Corro pra máquina de costura, sopro a poeira, escolho o retalho mais caro, procuro a linha azul da prússia. Vou lhe fazer uma máscara, Doroteia, belíssima. Você nem vai acreditar. Não sei se sabe o que está havendo. Senta, escuta, vou lhe contar.

 

Dheyne de Souza é goiana. Vive atualmente em São Paulo (SP). É doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Recém-publicou “lâminas” (poemas, pela Martelo Casa Editorial, 2020). Seu primeiro livro foi “pequenos mundos caóticos” (poemas, PUC/Kelps, 2011). Mantém ainda um blog e um canal de leitura de poemas chamado Pequenos Mundos. É membro do grupo goiano de vocalização de poesia Corpo de Voz.

 

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