Adriano Espíndola Santos
Conversão
Uma pequena falha de caráter? Um desvio grosseiro, pecaminoso? Retomei uma crença que havia se perdido no tempo, no meio de tantos ensaios à sabedoria, quando achava que o homem era o único ser supremo: a fé cristã. Nunca, no entanto, consegui me desvencilhar de uma culpa católica. Nas orgias que preparava em casa, sempre no dia seguinte me batia uma depressão, uma tremenda culpa me pesava, como se eu fosse o pior dos homens; deixei de visitar minha mãe, porque não conseguia lhe encarar; “O que ela iria dizer de um filho pervertido?”, refletia. Sim, passados dois ou três dias, quando os colhões estavam latejando de luxúria, eu me enfiava, de novo, entre as pernas do Naldo, no trabuco da Jeniffer ou na bunda da Sofia, um(a) de cada gênero ou espécie, como queira. Houve o dia em que reuni os meus três fantoches preferidos numa sauna alugada só para a gente. Foi uma fortuna. Apliquei praticamente toda a minha poupança nessa experiência, que julgava ser a última; havia sido diagnosticado com câncer de pele. Sobre o câncer, digo que foi um blefe do destino, porque o médico, muito competente, tirou a área afetada e não foram precisos maiores cuidados. Já estou em fase de remissão; considero-me curado. Luto para juntar algum trocado para pagar contas antigas, inclusive de débito com a sauna. Os ou as três mosqueteiros ou mosqueteiras me abandonaram. Eu também os(as) abandonei. Na primeira semana em que fiz a cirurgia – que foi um sucesso, segundo o médico –, voltei à igrejinha do Menino Deus. Fazia, pelo menos, uns dez anos que não pisava ali. Ajoelhei-me e chorei, pedindo perdão a Deus, por meu egoísmo, por um vício meu, só meu, que eu não sabia controlar. A promessa que fiz resultou em um sacrifício e uma obrigação, que entregava a Deus, de não me entregar mais à perversão. Lembrava-me de quando era menino e puro, e não pensava em sexo ou coisas do tipo. A minha luta diária é para pensar e sentir a beleza das flores, o silvo dos ventos do sul e a magnitude do rei Sol. Amargo uma dívida pior, que não serei capaz de saldar em vida. Minha mãezinha está com Alzheimer. Justamente na minha conversão, minha mãe perdeu os sentidos para acompanhar a dádiva. O que resta de memória para ela – se é que resta –, é para brigar comigo, me chamar de “menino maligno”, algo que, mesmo sabendo que ela fala por falar, me dói profundamente. Essas são a minha adaga e o meu pendor. Entendi que devo suportar tudo isso, para a minha verdadeira redenção. Noutro dia encontrei Sofia, no centro, e ela me recomendou uma boa trepada para eu mudar o meu humor. Disse a ela que o meu coração é novo – ainda que tentado por aquele rabo espetacular.
***
Só por hoje
Noite clara. Tempo manso e veloz. Uma rasga-mortalha mandou o seu canto fúnebre. Minha mãe dizia que o canto indicava casamento ou morte. Como se fossem os opostos: felicidade e tristeza. Eu estava na linha dos acontecimentos. E brutalmente acometido de melancolia. Guinha, meu amigo de infância, disse que isso tinha a ver com o abuso no consumo de drogas; que ele também estava assim, ferido, abatido. Namorava com Érica, que, cravada de obsessão, sempre que brigávamos dizia que ia se matar. Ela, sim, era doente em alto grau – e, à época, eu não achava que uma palavra do que dizia fosse verdade. Era, além de tudo, dramática. Numa queda, em que ralou o joelho, quis ir ao hospital para fazer exames, porque jurava ter fraturado a rótula. O drama foi dissipado com um tranquilizante, que os médicos deram, alegando que ela estaria, possivelmente, com síndrome do pânico; que era algo muito corriqueiro, dada a urgência dos nossos dias. Saía com Guinha e Bengala para as noitadas regadas a uísque vagabundo e cocaína. O dinheiro vinha do meu pai, dono de uma pequena mercearia de bairro, porque eu, quando podia, lhe ajudava. Já tinha desencanado dos estudos. Meu pai decretou: ou trabalha, ou estuda. Preferi fingir que trabalhava. Arrumava uma coisa aqui, outra ali, para mostrar que fazia algo. A minha obrigação principal era a entrega das águas. Rodava o bairro, na fissura, entregava o que dava e, para os insistentes, dizia que a água da marca tal estava faltando. Meu pai reclamava da diminuição das entregas. Eu queria mandar tudo para o espaço. Às 17h, saía do emprego e ia para a casa da Érica ou dava uns botes com os comparsas. Numa noite em que sumi com Guinha, quando cheiramos todas as carreiras possíveis que o nosso dinheiro dava conta, ao chegar em casa, meu pai disse que tinha ligado para todos os hospitais atrás de mim, e falou o pior: Érica estava no hospital por overdose de remédios; teve uma parada cardíaca e estava com insuficiência renal. Dois dias depois, Érica veio a óbito. Eu quis me matar, por minha razoável culpa. Mas a verdade é que não tive coragem. Ao mesmo tempo, estava com ódio de Érica, que mudou o meu destino. Por conta dela, pedi ao meu pai para me internar numa clínica. Não aguentava mais lidar com a minha vida, mundana, absurda. Poxa, eu já estava pronto para acabar o relacionamento. Não tive forças, a covardia é minha amiga. Foram anos dizendo: “Estou limpo, só por hoje”. Estou limpo, mas brabo, doente. Joana é uma santa que encontrei pelo caminho. Ela me ajuda, no que pode, e não sei até quando. Ainda tenho pesadelos com Érica gritando. Na última vez em que encontrei Guinha, ele estava acabado, voltou a consumir drogas e morava na rua. Foi a dor mais doída. Que não me pegue a desgraça, só por hoje; só por hoje.
Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”; em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, pela Editora Penalux; em 2022 a coletânea de contos “Não há de quê”, pela Editora Folheando; e em 2024 o livro de contos “Amparo secreto”, pela editora Urutau. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. É advogado civilista-humanista. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.