Claudio Parreira
HOMEM NA GARRAFA
Conheci todo tipo de homem no mundo: homem certo, homem torto, homem que come o próprio pé; homens de cabeça quadrada, de olhos líquidos, homens sem coração.
De todos esses aí, o que representa mais perigo é o homem virtuoso: não é difícil vê-lo sacar o dedo indicador como se fosse um revólver e apontá-lo diretamente para o seu nariz, condenando o seu comportamento ou os seus prazeres como se ele, e somente ele, tivesse sido escolhido por Deus em pessoa para purificar de todos os pecados essa abjeta espécie humana — da qual fazemos parte mesmo a contragosto.
Conheço ainda os homens doentes e os tristes, embora ache que são ambos a mesma coisa, um servindo apenas de extensão do outro. De toda a espécie, no entanto, gosto mesmo é dos homens que constroem vento, dos que respiram pássaros e ainda daqueles, mais raros, que desenham unicórnios nas nuvens com pincéis de luz. São os poetas, costumam dizer, e acho que esse nome é mesmo bem adequado.
Homem na garrafa, porém, desse tipo eu nunca tinha visto. Já vi muitos casos de garrafa no homem, que é quando o sujeito bebe quase que com a mesma urgência com que respira. São muitos, e é fácil encontrá-los principalmente nas sextas-feiras à noite, quando o fim do trabalho assinala o tão esperado começo da vida. Mas homem na garrafa… Bem, a primeira vez que eu vi um assim foi em plena avenida, durante o dia. Estava lá sorridente e tranquilo, os olhos bem abertos, a pele toda amarrotada. E um tufo de cabelo avermelhado escapando pela abertura do gargalo. Como sou um sujeito civilizado, vi mas fiz que não, passei como se fosse algo normal, desviei os olhos para os carneiros encaixotados, que hoje são tantos e tão comuns por causa da explosão da natalidade.
Em casa, contei o negócio todo à minha mulher. Ela me olhou bem nos olhos, fez a sua famosa cara de filosofia e disse:
— Grande coisa…
As semanas seguintes, confesso, foram da mais pura agonia. Passei a ver homens em garrafas por todo canto — e eles não eram fruto da minha imaginação: eram todos de carne e osso, pele e vidro, solidez e transparência. Os meus amigos passaram a fazer piada das minhas preocupações:
— Meu, só falta você dizer agora que viu um bode fumando cachimbo!
— Vi dois — falei. — Mas isso não vem ao caso. O que me intriga são os homens em garrafas.
Isso me deu a medida da mentalidade social a que estamos submetidos: as pessoas acreditam em tudo, górgonas passeiam nas ruas sem serem incomodadas, ninfas trepam sob os carros estacionados, Shakespeare e Dostoievski tomam Coca-Cola enquanto discutem o futuro da Internet. Tudo isso é tolerado e tido como comum, e eu acho bom que seja assim. Mas quando o assunto é homem na garrafa, tudo muda.
Com a cabeça cheia de pensamentos, um sabor de tragédia em minha boca, resolvi finalmente tomar uma atitude. Abandonei o escritório, ignorei o elevador e desci pela escada mesmo. Ganhei a rua feito um alucinado, atropelei três ou quatro ornitorrincos e fui até a esquina. Ele estava lá, o primeiro, ainda sorridente e tranquilo, o maldito tufo de cabelo vermelho balançando ao vento. Falei então com autoridade, a voz grave e sombria:
— Como é que você entrou aí?
O homem descolou os olhos do vidro, abriu ainda mais o sorriso e respondeu:
— Não entrei aqui. Foi esta garrafa que me envolveu.
Sou o tipo de homem que precisa saber as coisas. De nada adianta um milagre se eu não puder explicá-lo. Por essas e outras é que fui pra casa feliz, aliviado enfim, os pés chutando tartarugas como quem assobia uma canção.
***
A CAIXA
A caixa é pequena: menos de um metro quadrado. Mas tem me sustentado há mais de 20 anos.
Eu faço assim: chego na cidade, alugo um teatro modesto e espalho cartazes com uma fotografia colorida da caixa pelos postes. Em vermelho, uma frase bem simples: “O que será que tem dentro da caixa?”.
É o suficiente para lotar o teatro. A cada uma das 100, 200 pessoas eu falo: “Não é fantástico? Nunca vi coisa tão genial dentro de uma caixinha!”.
Com medo de serem consideradas insensíveis a tão refinada manifestação artística, as pessoas todas concordam. Algumas até acrescentam: “É mesmo! O conteúdo da caixa é impressionante!”.
Impressionante são as pessoas, eu diria. Mas isso não vem ao caso agora.
***
CARNEIROS
Sempre gostei de carneiros. Minha infância foi repleta deles: carneiros brancos, pretos, verdes; carneiros altos, sorridentes, inquietos, carneiros quadrados. À mesa também estiveram muitos carneiros, que mamãe preparava com um exagero de vinho e pimenta e hortelã.
Hoje, no entanto, não vejo mais carneiros por aí. Uma tristeza. As pessoas, aliás, nem sabem o que é isso. Algumas consideram já ter visto algo parecido na TV; outras, em fotos amareladas. As crianças que eu conheço acham que os carneiros são apenas seres imaginários criados pela internet.
Foi por causa disso que resolvi fotografar carneiros. Trazê-los de volta à luz, resgatá-los do esquecimento. Provar ao mundo que eles ainda existem.
Tenho 7 câmeras que registram tudo o que passa na rua, 24 horas por dia, todos os dias. Meu esforço, no entanto, tem resultado inútil: acumulo já há meses fotos e mais fotos de caminhões, dinossauros, tigres de bengala e fusquinhas, hidras, minotauros, senhores de chapéu coco, medusas, anjos e demônios, a putaquiuspariu. Carneiros, nenhum.
***
O CHOU NÃO PODE PARAR
Ele derrama lágrimas pela boca quando faz sol. Sorri estrelas às vezes, sempre dependendo da instabilidade natural do seu humor. Mesmo o seu silêncio é ruidoso: é um espetáculo, sabe-se assim, e assim se considera e se exibe. O chou não pode parar.
Mas o mundo anda repleto de tédio. As mulheres-barbadas, homens-elefante e crocodilos trapezistas não lhe dão a menor atenção. Perderam completamente o respeito; perderam a capacidade de sonhar.
Os mágicos extraem palavras mortas de suas cartolas roídas pela tristeza. Os coelhos brancos de fome e raiva conspiram contra a precariedade maquiada da lona velha e podre. Um dia a casa cai, torcem eles, certos de que estarão à distância e a salvo.
Ele não está, não se sente a salvo. Cada dia, matar um leão, dois, que lhe brotam dos bolsos como capim. Dos bolsos também retira pedrinhas azuis e lembranças pálidas. De um tempo em que fora outro, outra coisa. Alguém.
Agora é a tarde vazia que cresce nas pedras da rua, indiferença. O pulsar morno do coração que soletra ausências. Estímulo mesmo só o do conhaque, que pinga nos olhos para ver o dia em chamas.
O público, distinto público, ergue apenas as paredes da dúvida, da descrença: esse aí não é, desconfio do chou. Onde é que já se viu, espetáculo é o próximo milhão a ganhar, a grandiosidade do efêmero cintilante dia após dia após. A droga a qual nós o público estamos submetidos desde sempre, como cordeiros sob o machado de Deus.
Sabendo-se assim ele segue, cheio de nadas e de incertezas. Sob o sol é o homem-espetáculo, que teima em desafiar uma platéia de cegos. Um mundo trêmulo e arrogante, que por trás da máscara exibe apenas um circo perplexo de si mesmo.
Claudio Parreira é escritor e jornalista. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on line, Agência Carta Maior, entre outras publicações. Teve contos incluídos em diversas coletâneas e foi o ganhador do 1º Concurso de Contos da Revista piauí, em março de 2007 e, no ano seguinte, integrante do folhetim despropositado A Velha Debaixo da Cama, da mesma revista. É autor, pela Editora Draco, do romance Gabriel.
Claudio Parreiras consegue realizar muito bem textos nos quais o humor, a ironia e a crítica estão presentes. Eu os chamaria de literatura do absurdo.
Destaco “O homem na garrafa” e a crítica explícita da babaquice generalizada do “A caixa” e do “O chou não pode parar”. Maria Lindgren
Ótimos textos de absurdo, cheios de ironia e crítica
Maria Lindgren
Cada vez mais admiro os textos do Parreira. Fico matutando como chegar lá; desisto. Só o Parreira é capaz de juntar carneiros e caixas durante o chou. Parabéns.