Dedos de Prosa III

Lourença Bella

 

Cristina Arruda

Arte: Cristina Arruda

 

Declive

 

Com os braços debaixo da cabeça, era só ouvidos. Barulhos de passos na escada de madeira, gritos agudos vazando pelas paredes, o grasnar rude da dona das chaves. Motel de terceira – única espelunca que podia pagar. A mulher roncava aquele ronco de vaca saciada de capim verde. O ar era podre, o cheiro era podre, tudo apodrecia. E eu, um porra dum fracassado. Nunca saía do meio. Sempre entre o fundo e a borda do poço. Não servia nem pra chafurdar nas trevas. Levara um par de chifres e só conseguira pegar a primeira puta pra afundar nela toda frustração que rasgava minhas entranhas. Cheguei a pensar no tiro. A bala varando o peito e explodindo no colchão. Cheguei até a ver a cama chupando, sôfrega, o sangue enquanto a pilantra ia-se de olhos arregalados sem acreditar que eu puxara o gatilho. Não suportei a cena. Covarde. Preferi bater a porta e me esconder na escuridão. Agora estava ali, de frente pra minha caída no purgatório – o berço dos canalhas sem culhões. O lugar onde passaria a vida me arrependendo do ato que não saíra da imaginação. Outro ronco alto. Cabelos escuros cobriam o rosto que eu nunca vira. Aquele corpo mexera-se debaixo do meu. Fingida. Gritara como se eu estivesse arrombando o que nem porta tinha. Cuspi nela. De nojo e de raiva. Ela devolveu a cusparada e grudou os dentes em minha boca. Bem na hora em que me livrava do sêmen podre de covardia. E o gosto de sangue invadiu meus sentidos. Lambi o lábio e a ferida se fez novamente viva na ardidura. Raiva. Da mulher, da puta, de mim mesmo. Levantei. O coração estava mordido, espicaçado pelo desprezo da mulher. A noite me olhou. Escura e vazia. As estrelas pareciam esconder-se de mentes castradas – a minha. Saí sem fechar a porta, direto pra mureta. Fiquei ali olhando o rio escuro, sentindo seu cheiro fétido se misturando aos meus pensamentos. Fiquei ali segurando o saco. E pensando, sentindo e pensando na água inundando-me os pulmões. Acordei com dor no peito e tubos no nariz. Nem pra morrer eu nasci.

 

 

***

 

 

O voo da mariposa

 

Ela estava se revirando internamente. Desde que fizera quarenta anos era só um rodopio frente ao espelho. Não compreendia o que lhe acontecia. Os sentidos não chegavam à razão. Sabia apenas que dentro dela algo mudava quase que a cada nascer do sol. E o sol ultimamente estava nascendo de um alaranjado quase vermelho. É que dentro dela tinha um fogo doido e doído. Fogo que adivinhava a chegada do pôrdosol.

Havia uma urgência no ar do banheiro. O espelho mostrava as pequenas rugas que ela ignorava solenemente. Nunca antes se preocupara com o corpo. Agora ele parecia crescer à sua frente. E por detrás dele a imagem do menino. Aconteceu. O menino. Foi um encontro casual, destes que poderiam acontecer a qualquer pessoa. Entrou nela como forças opostas duelando-se. E rompeu a barreira da idade. Deixou-a equilibrando-se à beira do precipício. Porque havia nele uma parte da vida dela. A parte não vivida. E porque havia naquela espécie de loucura a esperança de salvação.

Durante os dias anteriores esteve numa voragem de expectativa. O fogo dentro dela buscava a carta do menino. O gelo lembrava os vinte anos que os separavam. E era o gelo que fazia afundar-se a linha entre as sobrancelhas. Tinha uma vida dentro da vida dela. Uma vida que se escondia. Vida sem causa ou efeito, mas que parecia querer explodir na pele.

Amava tudo à sua volta. O marido, os filhos, o verde das árvores. Ainda assim, sentia-se incompleta. Sabia. Só se completaria com esta vida secreta tão recém descoberta. A vida que faria o eterno transformar-se em intensidade do momento. E esta vida já não era apenas sonho. Tinha um corpo. E boca. E uma tensão que a fazia corda afinada de instrumento musical. Ou mariposa de voo incerto e esfuziante, perseguindo o fogo mesmo sabendo do risco de queimar-se.

Ajeitou os cabelos e foi em busca da bolsa. Ela iria se queimar, sabia. Mas sabia também que precisaria experimentar. Nem que fosse uma única vez. Viver era imperiosamente preciso.

 

Lourença Bella é mineira das terras vermelhas de Drummond, passou pela academia de onde saiu professora. Foi só o inicio. Pisciana que é, descobriu-se muito mais aprendiz. Abandonou a sala de aula, passando a trocar conhecimentos fora dela. Depois de anos trabalhando com Educação, virou a mesa. Foi aprender as regras do mundo empresarial onde se equilibra até hoje. Da academia guarda ainda a fome de conhecimento. Especialmente de si mesma. Por isso escreve.

 

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