I’m always crashing in the same car
[Diário Sentimental – Julho, 2010]
Maurício de Almeida
Sylvia Plath cutuca a orelha do meu pai satisfeita por saber que ele não é alemão, mas mineiro, e assim, ao redor da mesa, comemos uma macarronada pesada e bebemos um vinho barato e depois, singelamente tomados pela languidez de uma maré alcalina pós-prandial um tanto alcoólica, o cigarro caindo mal no estômago, o marasmo carregado deste apartamento suspenso no domingo, Drummond nos explica as ruas de uma cidade que provavelmente não existe (mas meu pai diz conhecer) rascunhando mapas e setas em formulários oficiais e diz
– devagar… as janelas se olham
e, de mãos dadas, Sylvia Plath e eu na sacada contemplamos sem interesse a noite despencando lenta no horizonte limitado desta cidade (que também não existe, apesar das janelas e dos formulários oficiais) e suspiro olhando longe
– eu direi as palavras mais terríveis esta noite
Drummond sorri, mas Sylvia Plath me ignora até que a noite finalmente pesada sobre nós e apenas eu e ela neste apartamento à deriva, a segunda-feira assolando em alarmes, mas, por enquanto, o domingo quente nos envolve em suor, a dimensão amorfa das nossas bocas engolindo-se envenenadas por conhaque e as mãos dela firmes segurando meus braços, espalmando meu peito para escapar num salto e negar o segredo de sua pele quente, o sutiã ainda fechado sobre os peitos, o mínimo de suas pernas abertas, pois ela sentada nesta cama cobrindo-se com o lençol como se de repente tomada por uma raiva que comove as noites mais interessantes de ócio e insônia, e percebo que de pouco resolveriam palavras terríveis, por isso sento-me também, pego o copo de conhaque perdido ao pé da cama e ofereço a ela um gole, pois talvez um tanto mais de álcool aplaque a auto-piedade subindo forte, mas ela teme (ou deseja demasiadamente, não sei) o que há de mais absurdo na embriaguez, palavras confusas, ideias impertinentes e impulsos incontroláveis, e, sem pressa, aponto meu dedo em riste e procuro o tom certo para dizer que o calor deste domingo está me atazanando a libido, mas fico quieto ao vê-la agora em pé expondo seu corpo branco e não muito esguio, ela caminhando devagar em direção a janela, olhando como se não visse o horizonte impossível desta cidade, penumbra de copas das árvores, luzes acessas, letras pairando em neon, ela caminhando para alcançar o rádio, ligá-lo
Those kilometres and the red lights
e pegar a bolsa sobre a escrivaninha com certa displicência e alguma intenção, desarmar a tampa de um tubo pequeno e distribuir um forro espesso sobre uma tira de seda para bolar um inventando origamis com a língua e sumir na fumaça
I was always looking left and right oh, but I’m always
ela ao meu lado e nós deitados e muitíssimo quietos, o som ecoando monocórdio
I’m always crashing in the same car
um arrepio me subindo as costas, a garganta seca e os ouvidos cismados em sons descontínuos
always always always
ela me alcançando o rosto, nossos lábios muito secos investigando-se sem cuidado, um tumulto de línguas, Sylvia Plath me mordendo o pescoço e estes olhos imensos e esvaziados me encarando como se não me vissem, mas eu em estado de graça por esquecer rumores e insônias e conseguir me fingir longe deste quarto à deriva de segundas-feiras
I was going round and round the hotel garage
Sylvia Plath me pesando sobre o corpo para estatelar meus olhos num gozo e dormir um sono tranquilo de criança, então me aconchego a ela, fecho os olhos e a envolvo num abraço para embalar o sono e continuar gestando este momento no meu absurdo ventre de algodão e molas, a paz desta noite plena de fugas, entretanto, ela se contrai e se debate, a janela sopra uma brisa leve que sacode copas das árvores, apaga luzes e avacalha letras pairando em neon fazendo-a acordar, cabelos desgrenhados, olhos amarrotados
– ainda é noite
eu digo e ela apenas sorri
– durma
e ela se espreguiça e se ajeita e redescubro o corpo dela que volta ao sono, meus dedos coçam as palmas suadas para evitarem tocar o pouco das pernas dela que foge ao lençol, alguns pêlos muitíssimo escuros serpenteando a virilha aos quais não resisto e dedilho em compassos lentos os suspiros dela, nossos braços se enfrentam, minhas pernas entrelaçam sem jeito às dela e ensaiamos passos tortos nesta noite que se faz confusa também por ela violentamente em pé, um abandono, um adeus, ela se levanta
– Sylvia?
conturbando as coisas deste quarto que se sobrepõem me compondo isto que entendo por vida e sei não existir saída, pois estamos aos círculos ao redor da mesa, a mesma macarronada pesada e o mesmo vinho barato, o cigarro me acertando murros no estômago para me nocautear neste colchão soterrado por uma pilha de sonhos catastróficos confundindo rostos e medos e, ainda que vasculhe (e vasculho) o que há de mais íntimo neste breu em busca de alívio ou descanso ou qualquer coisa, outra vez me atento à confusão de sons que se explica em pessoas suspirando tédio, questionando a aurora ainda distante e ela pisando leve pela casa
– Sylvia?
não me dando ouvidos
– Sylvia?
não importa o quanto eu diga, o quão alto grite, e eu grito, é claro que eu grito, pois ela abrindo a porta da sala
– Sylvia
para sair correndo por entre copas de árvores e setas neon que Drummond desenhou em papéis timbrados sem se importar com essa ânsia que me corrói em grandes mordidas por me saber dando o mesmo muro na ponta da mesma faca, não posso aceitá-la correndo longe sendo que uma espécie de conforto os dedos dela entre meus cabelos, o corpo quente que eu envolvia num sono, mas agora, às 3h da manhã desta madrugada ordinária, Rilke e Rosa jogam escravos de Jó e, derrotado nesta cama, tenho certeza absoluta de que Sylvia Plath enfiou a cabeça num fogão porque se cansou disto que me cansa.
(Maurício de Almeida é autor de Beijando dentes (Ed. Record), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de literatura 2007)