Marcus Vinícius Rodrigues
[1976] A ALMA DO DIABO*
She has given her soul to the Devil
but the devil gave his soul to God
Caetano Veloso
Quando o Major Andrade passou mal em casa, acabava de colocar o uniforme para ir ao quartel. Tinha acordado cedo para engraxar os sapatos e polir o cinto. Podia ter feito isso na noite anterior, mas há muito tinha adquirido o hábito de revisar seu uniforme pela manhã. A mulher deixava tudo passado e em ordem. O que lhe cabia, cinto e sapatos, ele cuidava logo quando acordava. Deviam estar sempre brilhando, impecáveis e, mesmo já limpos, ele tornava a escovar e polir. Depois era vestir-se. As meias esticadas até o alto da canela, a calça verde-oliva com o vinco exato, sapatos, a camisa cáqui, a gravata de mesma cor, a túnica também verde-oliva e o quepe. Vestia-se nessa ordem. Naquele dia, por um motivo que não saberia dizer, mas que, depois, pensaria ser um indício já de sua doença, um indício da desordem do corpo na rotina de vestir… naquele dia ele colocou a túnica antes da gravata.
Não era uma gravata comum, mas daquelas de nó pronto com um gancho para encaixar no colarinho. Foi por isso que ele, ao sentir o aperto na garganta, teve certeza de que a gravata não lhe apertava. Algo o enforcava e não eram as roupas, mas ainda assim tentou se desfazer da gravata que teimava em não sair, agarrada ao botão do colarinho. Teve de puxar com força e rasgar a camisa. Com o alívio momentâneo é que se deu conta. O braço formigava como se dormente e o peito estava apertado numa angústia de morte anunciada. A cabeça latejava. A rigidez da túnica lhe impedia de levantar direito os braços, não conseguia tocar a testa com a mão. Naquele momento não sabia se era uma fraqueza do corpo ou se tinha esquecido o movimento da continência. Para vencer as mangas rígidas do uniforme tinha de esticar primeiro o braço para a lateral. Assim ele escapava um pouco do tecido. Só então fazia o gesto de levantar o braço até a testa. Pronto. Estava feita a continência.
Naquela manhã não foi assim. O uniforme apertava e mais parecia uma camisa de força do que uma roupa e seus símbolos. O Major Andrade caiu no chão do quarto e lhe pareceram muito longos os instantes em que ficou ali sufocando. Antes de perder a consciência, imaginou ser essa a sensação de quem é torturado: um quase morrer que nunca se completa. Uma agonia sem fim. Esse foi seu último pensamento antes de tudo escurecer no quarto, enquanto lá fora, às cinco e meia da manhã, começava um novo dia.
*
O quarto era branco.
Dizer assim uma simples constatação parece redundante e desnecessário para qualquer um, mas para o Major Andrade era uma constatação infeliz. Ali naquele quarto de hospital tudo era branco. Faltava algo verde-oliva nas portas que pudesse lembrar o Hospital Militar de Salvador. Quando ele acordou pela primeira vez, quis saber por que não estava lá.
— Eles não têm equipamento para cuidar de você, querido.
A esposa tentava a todo custo convencê-lo a aceitar o hospital civil sem reclamar. Ele aceitava, dava-se por rendido, mas reclamava e acha defeitos em tudo. Tinha tido um infarto, estava ferido, fora de combate, mas não se conformava. Por que o exército não tinha um hospital bem aparelhado? Que diabos estavam fazendo com a tropa?
— Se você ficasse lá ia morrer.
— Palhaçada! Saindo daqui vou falar com o Comandante da Região. Se um soldado não tem tratamento certo, seguro, como pode defender o país? Se precisar, mando carta pro Geisel. Absurdo.
— Meu velho, você tem de ficar calmo. Assim só piora.
O médico, que já entrava no quarto enquanto a mulher falava, emendou.
— O senhor tem de relaxar pra ficar bom logo.
Andrade olhou para o médico com algum desprezo. Era novo, não devia ter nem trinta anos. O que ele sabia de medicina?
— É esse menino que está cuidando de mim?
A mulher respondeu com um olhar de recriminação.
— Ele não fica quieto, Doutor, não se acalma.
— Se o senhor não se acalmar, vamos ter de lhe dar um calmante.
O médico falava com uma paciência estudada, complacente, como se lidasse com uma criança. Aquilo só irritava mais ainda o Major.
— Quando ele sobe pra cirurgia, Doutor?
— Marcamos pra de manhã.
— Cirurgia?
— Sim, querido, eu lhe falei.
Ele não lembrava. Como iam operá-lo naquele hospital? E sem nem mesmo ser consultado? Começou a praguejar, queria uma explicação, queria sair dali.
— Esses médicos não sabem nada. Eu não vou ser operado por esse menino.
— Calma, meu querido.
O médico resolveu que era melhor deixá-los conversar. Ele teria de ser operado. Teria ainda de esperar até o outro dia e, depois, repouso. E quem sabe quais as consequências? Talvez fosse reformado, fosse para a reserva e fim. Acabado. Morto ou vivo não seria mais o soldado que era. Tanto tempo de dedicação ao Exército; aqueles anos todos defendendo o país e justo naquelas circunstâncias, o país em crise. Os comunistas.
A mulher tinha conseguido acalmá-lo. Deixou-o sozinho no quarto.
Veio, então, uma enfermeira. Era uma mulher de uns quase trinta. Todo mundo tinha quase trinta naquele hospital e ele não confiava em ninguém com menos de trinta anos. Era morena clara. O cabelo meio cacheado estava esticado e preso num coque atrás da cabeça. Via-se que todo o desalinho do cabelo tinha sido domado com mão de ferro. Uma disciplina militar. Ela o cumprimentou sem nem mesmo olhar e começou os preparativos para um remédio. Preparava uma seringa.
— Vai me furar com isso pra quê?
Ela finalmente olhou para o paciente assustada. O major percebeu o susto.
— Que é? Estou mal assim?
— Não, senhor.
— Pra que é esse remédio?
— É pro senhor relaxar um pouco.
— Vai me dopar?
Ela não hesitava ao colher o remédio com a seringa. A mão firme. Depois foi só injetar no soro lentamente.
— Já, já o senhor vai estar tranquilo. Vai ser bem suave. Tá?
Era verdade, aos poucos ele se acalmava. Ela arrumou os apetrechos e se preparava para sair quando ele a chamou.
— Vem cá, eu já não te vi antes?
A moça se virou. O rosto estava imóvel, sem nenhuma reação, uma frieza típica de enfermeiras. Já tinha visto tantas coisas.
— Como é seu nome, menina?
— Maria.
— Maria de quê?
— Só Maria, senhor.
— Tem sobrenome?
— Sim, senhor.
— E não vai me dizer?!
— Não, senhor. Agora o senhor precisa relaxar.
— Eu lhe conheço.
— Acho que não.
— Conheço, sim.
— Senhor, talvez seja o remédio. Ele já deve estar fazendo efeito. Vou deixar o senhor dormir. Boa noite.
Ela saiu e fechou atrás de si a porta branca. O quarto ficou numa penumbra branca. Com se estivesse numa noite glacial. O branco foi se desgrudando das paredes como se fosse algodão e aos poucos começou a cobrir a cama onde estava o Major, lentamente, como neve. Ele se viu inteiramente coberto. Sentiu-se um pouco sufocado. Teve medo de morrer, um medo vago, um sentimento que pouco a pouco se distanciava, ou era ele que parecia estar cada vez mais distante. Parecia escapar, sumir, até que finalmente o branco escureceu de vez e tudo se apagou.
*
Acordou no escuro. Apenas o retângulo da porta fechada se destacava. Voltou a fechar os olhos e a imagem da enfermeira apareceu na sua frente. Não estava de cabelos presos. Eles estavam soltos, ondulados, desalinhados. Usava um vestido azul, simples, que descia reto até os joelhos e era abotoado na frente. Não tinha nada do espalhafato dos jovens daqueles tempos esquisitos. Nada de estampas, calças jeans. Uma moça de família. Ela chorava e repetia “meu irmão”, “meu irmão” e então desapareceu de novo no escuro meio avermelhado das pálpebras fechadas do homem. Ele voltou a dormir o sono químico do remédio, o sono profundo de um corredor longo em que podia ouvir portas de ferro se fechando e gritos. Eram gritos distantes, abafados, como se alguém estivesse sendo sufocado. Ele andava e os gritos pareciam mais próximos, como se fossem sussurrados em seus ouvidos. Vinham cada vez mais perto, até que pareceram entrar na sua cabeça e ficaram mais e mais abafados e, por fim, viraram uma tosse descontrolada.
Acordou tossindo, engasgado na própria saliva. Por um segundo, sentiu que ia sufocar. Precisou levantar e sentar na cama. Queria gritar, mas a voz não saía, pelo menos não audível. Pensou que sua mulher pudesse estar ali no quarto velando seu sono. Não estava. Estava só no escuro. Aos poucos a garganta se desobstruiu e pôde emitir um pigarro mais alto. Queria cuspir, mas onde? Não tinha nenhuma aparadeira perto. Acabou cuspindo no chão, um cuspe grosso, escuro, que logo se transformou em vômito. Ficou um tempo debruçado para fora da cama até que a ânsia acalmou. Ainda recostou um tempo na cama para só então ouvir algum barulho. O retângulo de luz se abriu na porta e entrou a enfermeira.
— O senhor está bem?
— Claro que não. Não tá vendo?
A moça olhou o chão sujo.
— Quase morri aqui sozinho. Não tem ninguém aí, não?
— Eu estou aqui, senhor.
— Minha mulher?
— Não sei dizer. Deve ter descido. Eu mesma vou limpar isso.
Ela acendeu a luz e saiu, voltou logo com um carrinho de material de limpeza e uma bandeja com vários outros materiais.
— Estamos sem pessoal de limpeza à noite, mas já vou limpar isso tudo.
— Hospitalzinho de merda.
Ela se concentrou primeiro no chão. Enquanto ia de lá para cá entre quarto e banheiro, o Major Andrade voltou a reconhecê-la.
— Eu conheço você, sim.
Ela não parava a limpeza. As mãos enluvadas para recolher o vômito do chão.
— Acho que não, senhor. Eu, pelo menos, não me lembro.
— Você tem um irmão?
A enfermeira o olhou sem expressão. Mesmo enquanto limpava o chão sujo sua expressão era impassível. Nenhum nojo aparente.
— Não, senhor. O senhor fuma, não é? Não precisa ficar preocupado com esse muco. Vou relatar ao médico, mas tenho certeza de que não é nada grave. Pelo menos não agora.
Levou o pano sujo para o banheiro e de lá continuou. A voz saiu um pouco mais alta, mas ainda calma e controlada.
— O senhor fumava sem filtro?
De volta ao quarto.
— Ou cigarro de palha?
— Os dois.
— O senhor devia fumar só cigarro. E com filtro. É melhor.
— Eu lembro de você procurando seu irmão no quartel.
— Eu não tenho irmão, não. O senhor deve está me confundindo com alguém.
— Tem, sim. Ou tinha. Ele foi preso, não foi? Era subversivo.
Ela tinha terminado a limpeza. Preparava, agora, um chumaço de gaze.
— Era comunista.
O rosto de Maria continuava imperturbável. Havia apenas um esboço de compreensão, o ar compassivo que as enfermeiras fazem para qualquer dor que um paciente sinta, seja uma febre ou um câncer terminal, a mesma face suave e calma. Confiante.
— Eu preciso limpar o senhor. Posso?
Começou a limpar o rosto do paciente, queixo, pescoço.
— De manhã um enfermeiro vem lhe dar um banho. Isso é só pro senhor não dormir sentindo o cheiro do vômito. Não vale a pena perder o sono agora.
— Você é muito educada, mocinha. Me admira ter um irmão comunista.
— Me desculpe, mas não sei do que o senhor está falando.
— Sabe, sim. Você foi várias vezes atrás dele. Isso aconteceu há uns dois ou três anos. Não lembro bem, foram tantos. Ele tinha desaparecido. Fazia tempo que você não o via. Ele tinha ido pra clandestinidade. Não sei o que fazia antes, algo na universidade. Professor ou estudante? Tinha sido expulso e entrou na luta armada. Uns marginais, você sabe.
— Eu não acompanho política.
— Pelo visto, não mesmo. O que eles não entendem é isso. Os subversivos. O povo está do nosso lado. Ninguém quer saber dessa história de comunismo. As famílias não querem. Alguém precisava fazer alguma coisa. Foi o povo que pediu a Revolução. E o Exército apenas protege a vontade do povo.
Ela não respondia nada.
— A influência deles é nefasta. Eles se metem na música, nos programas de televisão. É esse desregramento; a nossa juventude está se perdendo.
Ela acabou o que estava fazendo e começou a arrumar as coisas para ir embora.
— O senhor precisa voltar a dormir.
Ele a segurou pelo braço. Segurou forte. Queria que ela o olhasse nos olhos. Puxou-a.
— Você achou seu irmão?
Ela pegou a mão, tirou-a do próprio braço e a colocou de volta sobre o peito do paciente.
— Agora o senhor precisa dormir.
A voz era mais firme do que antes.
— Menina, eu sou um Major do Exército Brasileiro. Só recebo ordens de meus superiores.
— Mas aqui o senhor tem de obedecer. É para sua saúde.
Falou no tom amigável com que se fala com as crianças. Arrumou suas coisas e ia saindo quando ele a chamou.
— Não quer saber o que aconteceu com seu irmão?
Ela parou na porta. Ficou um instante em silêncio até voltar-se com o rosto plácido de sempre.
— Parece que o senhor não vai dormir, não é?
— Quer saber se ele está vivo?
Ela continuou parada na porta.
— Sente aí.
Não sentou. Ficou imóvel no mesmo lugar.
— Seu irmãozinho era um agitador. Tinha mesmo de ser expulso da Universidade. Acho que era estudante, não é? Nossos homens estavam na cola dele há muito tempo. Sumiu, mudou de nome. Ele era o tal Carlos, não era? Você parece que não sabe de nada. Ou sabe? Essa cara tranquila…
Ela continuava no mesmo lugar.
— Sente.
Apontava a cadeira convidativo.
— Seu irmão não era assim. Era fraco. Não fui eu que prendi, mas sei que ele foi encontrado numa casa na Ribeira. Quando os colegas chegaram, ele se escondeu na caixa d’água. Quase se afoga, o idiota. Chegou na unidade molhado e sangrando. Às vezes é preciso dar um corretivo nos caras. Sabe como é, né? É preciso pôr ordem nas coisas. Jogamos ele no buraco e esquecemos lá. Nem sei quantos dias. A ordem era essa. Primeiro uma adaptação, pros caras esquecerem o mundo lá fora. Quando tiramos, ele tossia muito. Estava todo vomitado, mijado, cagado. Fedia muito.
Maria franziu um pouco a testa, muito levemente.
— Tá com nojo? Mas você não teve há pouco quando limpou meu vômito.
— Não.
— Pena? Eu entendo, afinal era seu irmão. É compreensível. Você é uma boa moça. Católica, temente a Deus. Eu também. Vou à missa todo domingo. Faço meus filhos irem também. Tenho dois filhos, um casal. A moça ainda está na escola, dezesseis anos. O rapaz já é casado, é engenheiro. A esposa é professora, fez escola normal, mas não trabalha mais. Casou. Tem de cuidar dos filhos que vão nascer e não dos filhos dos outros. Você é casada, minha filha?
— Não, senhor.
— Mas ainda é moça. Logo vai casar. Quem sabe um médico desses daqui, um rapaz direito. Tem um oficial recém incorporado no meu quartel, um tenentinho. Não namorou ninguém desde que chegou. Já falei pra ele arrumar uma noiva. Assim é esquisito. As pessoas comentam. Quem sabe ele vem aqui, hein? Você é uma boa moça.
Eles ficaram um pouco em silêncio.
— Quer que eu continue?
— Não precisa. O senhor tem de descansar.
— Mas eu vou continuar. Seu irmãozinho estava muito mal, com febre. Sabe Deus que doença tinha. Mas era preciso limpar, né? Ali só tinha um jeito. Botaram ele no pátio e lavaram com um banho de mangueira. Ele tremia tanto, era incontrolável. Parecia um boneco. Foi a diversão dos soldados. Depois demos toalha e roupas secas pra ele. Ele não podia piorar. Tinha muito a falar. Olha, quem fala sofre menos. Ele devia ter falado logo. Esses caras são assim. Sabem que vão soltar a língua, entregar todo mundo, mas demoram, ficam sofrendo. Era tão mais fácil entregar logo o jogo. São muito burros. Seu irmão foi muito burro.
— O senhor torturou ele?
— Sim. Quer ouvir? Senta e escuta.
Uma sombra tomou conta do rosto dela. Ela sentou na cadeira e esperou. Não olhava para o paciente, olhava para os lençóis da cama.
— Eu ainda era Capitão naquela época. Meu trabalho era interrogar os subversivos. Fiz isso muitas vezes. Era assim que a gente descobria os planos deles, era preciso. Uma questão de segurança nacional, sabe? Esses terroristas estavam à solta por aí fazendo baderna, assaltos, sequestros, explodindo coisas. Ainda estão. O país não está seguro. Nós vivemos anos perigosos, uma guerra.
— O senhor torturou muita gente?
— Foi preciso. Seu irmão foi um caso. Não colaborou. Poxa, na primeira surra era pra ter falado. Peguei dois soldados e mandei espancar. Primeiro de leve. A gente tem sempre a esperança de não precisar pesar a mão. Eu sou muito humano. Não sou de exagerar. Levou pauladas nas mãos e nas palmas dos pés, telefones. Sabe o que é um telefone?
Ele acenou positivamente com a cabeça.
— Você sabe. Pois não adiantou. Botamos na geladeira um tempo, nada. Geladeira é um cubículo baixo. A gente esfria, esquenta, esfria… o marginal fica uns dias lá debaixo de uma barulheira infernal. Seu irmão ficou. Nada. Ele não dizia nada. Foi aí que eu tive certeza. Um terrorista treinado. Ele resistia bem. Tava na cara que sabia de alguma coisa grande. Quanto mais eles se calam, mais a gente sabe que estão escondendo algo. É sempre assim. Seu irmão não seria diferente. Depois disso, fizemos afogamentos. Sabe como é?
Ela fez que sim novamente.
— Sabe não. Pensa que é só enfiar a cabeça num balde ou num tonel com água? Tem isso, ok, mas não é só. Pra mim funciona melhor tapar o nariz do sujeito e enfiar uma mangueira de água na boca. Liga e pronto. Ele vai engolindo água até sufocar. Quem já engoliu água na praia sabe o desespero que dá.
Ela se levantou.
— O senhor vai me desculpar, mas eu preciso ir.
Os olhos piscavam para disfarçar as lágrimas que queriam vir. O nariz estava vermelho.
— Não que saber mais?
— Não, senhor.
— Ele precisou ir para os choques, o pau-de-arara. Era teimoso o danado. Gritava, gritava muito, muito.
Ele colocou as mãos nos ouvidos, como se ainda pudesse ouvir os gritos dos presos, todos dentro de sua cabeça. Os olhos fechados.
— O senhor me dá licença.
Maria aproveitou o momento para fugir daquele lugar. Já saía do quarto quando ele completou.
— Ele acabou falando, menina. Contou tudo. Eles sempre falam.
Ela parou na porta entreaberta.
— E depois?
— Depois, pegamos os comparsas todos. Todo mundo. Fim.
— Assim? Fim? Acabou?
— As coisas não acabam assim, minha querida. Essas coisas não acabam bem.
Ela não conseguiu dizer nada. Saiu e fechou a porta atrás de si.
Ele ficou sozinho de novo. Por que tinha dito tudo aquilo à moça? Estava meio alterado, a respiração ofegante. Ia morrer logo, achava. Sussurrava para si “não passo de hoje, não passo de hoje”. Sentia que ia morrer, sabia disso enquanto fechava os olhos. Via um escuro diferente, mais negro que o normal. Definitivo.
*
Do seu sono ouviu a porta do quarto abrir. Abriu os olhos e viu a enfermeira novamente. Estava plácida, equilibrada. Manejava uma bandeja com seringas e remédios. Quando percebeu que ele estava acordado, sorriu.
— Está acordado? Como está se sentindo?
— Bem.
Ele estranhou a calma da moça. Tinha saído transtornada antes e agora voltada como se nada tivesse acontecido. A mesma feição compassiva de antes.
— Você deve me achar um monstro, não é?
— Como?
— Depois de tudo que eu lhe contei.
Ela sorriu compreensiva.
— O senhor não se preocupe. Está tudo bem.
— Você está com ódio de mim, não é?
Ela preparava o medidor de pressão.
— Deve me achar um torturador de merda. É isso.
Encheu o medidor de pressão. O braço do paciente ficou apertado. Ele achou que estava exagerado, doía. Pensou em reclamar, mas logo a pressão começou a diminuir. Ela se concentrava na medição.
— Sua pressão está alta. Vou precisar lhe medicar.
— Você?
— Sim.
— E onde está o médico?
— Ele vem mais tarde, não se preocupe.
— E minha mulher?
— Ela está lá embaixo, já vai subir.
Ele desconfiava da calma da moça. Como ela podia estar assim tão calma depois de tudo que ele falara?
— Você vai me matar.
Ela olhou para ele surpresa. A seringa estava na mão pronta para colher o remédio na ampola.
— O senhor está agitado. Esse remédio é justamente pra lhe acalmar.
— Você quer se vingar de mim. Eu não tenho medo. Se eu morrer, não vou para o inferno. Tudo que eu fiz foi pra defender o meu país. Já você, você é uma assassina. Eu sou um soldado, eu obedeço ordens. Ninguém pode me culpar de nada. Sou católico, vou à missa, confesso, comungo. Eu entreguei minha alma a Deus. Quando eu morrer o próprio Jesus vem me buscar porque eu defendi meu povo. Eu fiz o que era preciso. E se fiz alguma coisa de errado é porque precisava fazer o certo. Alguém tinha de fazer. Você, não. Você é uma assassina. Vai pro inferno.
Ela olhava para ele com uma expressão diferente da placidez de antes. Era como se controlasse uma impaciência. Quem a visse fora daquela cena sentiria que algo a incomodava.
— Senhor, esse remédio é apenas para acalmá-lo.
— Você vai me envenenar. O que é isso?
— Um tranquilizante leve. Apenas para o senhor dormir melhor. Foi o médico que passou.
— Eu não vi nenhum médico.
— O senhor estava dormindo, um sono agitado. Ele achou melhor repetir a dose do remédio.
— Não.
— Por favor, Capitão. O senhor vai ver como tudo vai melhorar.
Aquela voz lhe chamando de capitão lhe fazia voltar no tempo. A menina implorava pelo paradeiro do irmão. A mesma frase repetida várias vezes, chorosa, desesperada. “Por favor, Capitão.”
— Major. Eu sou um Major.
— Me desculpe, eu me confundi.
Ela enfiou a seringa no receptáculo do soro e injetou o remédio. Ele sentiu o líquido entrar no seu braço. Com a outra mão quis puxar a agulha, mas ela o impediu. Ela era surpreendentemente forte para uma moça. Olhava com a expressão firme. Ele repetia entredentes.
— Assassina.
— O senhor não se preocupe, Major. Acabou. Agora tudo vai ficar bem.
Ele sentiu o branco do quanto avançar sobre sua vista. Tudo ficou enevoado. Só os olhos negros na enfermeira permaneciam visíveis. Depois, esse negror se ampliou como se o sugasse, como se ele fosse levado por um corredor escuro com um barulho longe de portas de ferro e uns gritos desesperados, cada vez mais longe, cada vez mais longe, e no fim de tudo, nada.
*Conto de abertura do livro A Eternidade da Maçã, obra vencedora do Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, 2016.
Marcus Vinícius Rodrigues nasceu em Ilhéus-BA e vive em Salvador. Escreve ficção e poesia. Publicou os livros “Pequeno inventário das ausências” (Poesia, Prêmio Fundação Casa de Jorge Amado, 2001); “3 vestidos e meu corpo nu” (Contos, P55 Edições, 2009), “Eros resoluto” (Contos, P55 Edições, 2010), “Cada dia sobre a terra” (Contos, Ed Caramurê/EppPublicidade, 2010), “Se tua mão te ofende” (Novela, P55 Edições, 2014) e “Arquivos de um corpo em viagem” (poesia, Editora Mondrongo, 2015). Recentemente, lançou “A Eternidade da Maçã” pela Editora 7Letras.
Excelente conto, o Professor Marcus Vinícius é maravilhoso!